“Amo!” A exclamação pode aplicar-se àquele vestido ou fato que estão expostos numa montra ou a um prato novo que se degusta e supera as expetativas. O amor chamado para aqui e para acolá, menciona-se por palavras ou emojis por “dá cá aquela palha”, ou seja, por tudo e por nada. E, contudo, em alturas cruciais, a palavra custa a sair da boca – se é que chega a ser pronunciada – quando alguém faz a pergunta primordial e espera resposta: “Amas-me?”
Hoje, como na Antiguidade Clássica, o amor reclama eco. Agora, como há meio século, na aldeia global, o velho slogan segundo o qual é melhor fazer amor em vez da guerra ainda consta no menu de cada dia. Na Modernidade Líquida (expressão cunhada pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman), marcada por laços tão fluidos quanto fugazes, a ideia de amar os outros como a si mesmo permanece um enigma, sobretudo se se desbarata o termo que, usado de forma irrestrita, parece despojado de consistência e, até, significância.
Num tempo em que abundam os discursos de ódio, os casos de violência doméstica e no namoro e os crimes sexuais contra menores (mais de metade cometidos por familiares e pessoas próximas), será urgente resgatar o amor e reaprender a cultivar a sua amplitude?
Em nada são iguais
Os dilemas do amor são tão antigos quanto a Humanidade (a palavra foi ganhando novos contornos com o avanço vertiginoso da IA e da sua aplicação a todas as áreas da vida). E ninguém melhor do que os filósofos da Grécia Antiga para classificar o património amoroso, como referiu a médica americana Kirtly Parker Jones, ao podcast The Scope, da Universidade de Utah.
Talvez o mais conhecido seja o amor erótico – Eros – circunscrito à esfera sexual e passional e conotado com a atração e o desejo. Sabe-se hoje que evoluímos para nos apaixonarmos mas não permanecer assim por muito tempo, na medida em que a libertação de adrenalina, dopamina, endorfinas e outras hormonas em doses proibitivas vicia, leva-nos a procurar sempre mais, sem nunca se chegar à saciedade e, por vezes, com a desconfortável sensação de estar febril, sem controlo ou à beira da loucura, por alternar entre estados de euforia e de tristeza (e, consoante as circunstâncias biográficas, podem resultar em depressão e desespero). O grande paradoxo: o amor idealizado é, ainda, o mais valorizado.
O amor entre pares – amigos, irmãos ou companheiros de luta – e batizado de Philia é, cientificamente falando, benéfico para a saúde, na medida em que as emoções relaxantes e positivas que resultam destas conexões nos fazem atravessar desertos sem soçobrar, na certeza de não estarmos sós, havendo quem prefira o chamado amor platónico ao erótico, por ser um melhor garante de ingredientes como a lealdade e de confiança, à medida que se desenvolve e expande.
O amor que os pais nutrem pelos filhos parece ser mais vasto ainda, porque nele cabe a possibilidade de não ser recíproco e, mais ainda, permite que se tolerem comportamentos e atitudes que não o seriam noutro contexto (“não fosse meu filho e nunca mais lhe dirigia a palavra”, por exemplo). O mais empedernido dos corações derrete-se quando tem nos seus braços uma criatura minúscula, exposta em toda a sua vulnerabilidade. Quem já foi pai ou mãe sabe que a sua sensibilidade fica aguçada (e seus correlatos hormonais, como a oxitocina e a dopamina) e que os noticiários nunca mais serão vistos da mesma maneira, porque há sensações e sentimentos plenos que dão lugar a competências relacionais.
E o que dizer do amor incondicional – o ágape ou o amor ao próximo – que se estende a todos os seres e se dá, de forma abnegada, generosa, altruísta? Ser solidário com terceiros gera bem-estar e, ainda, a sensação de contribuir para algo maior que nós. Essa é a essência do verdadeiro amor, como fez saber o filósofo alemão Erich Fromm, autor de clássicos como A Arte de Amar. Fromm, que também era psicanalista, argumentava: “Se uma pessoa amar outra e for indiferente aos seus semelhantes, o seu amor não é amor, é um apego simbiótico.”
Na visão do humanista, cabe a cada um de nós (e somos oito mil milhões, no planeta!) desenvolver essa força vital através da autoconsciência. Para ser amado, é preciso arriscar amar, cultivando uma atitude de cuidado face ao mundo como um todo, ainda que não fosse isso que, à data, via à sua volta: “O homem moderno transformou-se numa mercadoria (…) e está alienado de si, dos seus pares e da natureza.”
Amar dá trabalho. O pode acontecer quando não se investe no amor próprio e uma pessoa se cinge a encontros funcionais, destituídos de afeto ou se desfazem à mínima contrariedade?
Não é como no supermercado
Precisamos de conexões emocionais, ricas em intimidade e afetos, uma demanda que implica um delicado equilíbrio entre duas forças opostas: a autonomia e a dependência. O psiquiatra e psicoterapeuta norte-americano Irvin Yalom (atualmente com 92 anos) tem dedicado boa parte da sua vida a escrever sobre as relações amorosas e as funções que desempenham nas nossas vidas, desfazendo ideias feitas. Uma das mais comuns é a de que amar é apaixonar-se e manter a chama.
Com uma vasta produção literária que tem merecido a atenção de psicoterapeutas e investigadores, Yalom considera que “há uma distância imensa entre o amor passional (“cair de amores”) e o permanecer apaixonado (“falling vs standing in love”) e vai ao cerne da questão: amar é, antes de tudo, dar-se, na primeira pessoa. Tal implica ser inteiro (a ideia da cara-metade não tem cabimento aqui) e ter a ousadia de experimentar e de errar, pois só assim se avança para o “nós”.
Conhecer necessidades, medos e expetativas próprias é condição-chave para desenvolver uma comunicação autêntica, indispensável para criar vínculos seguros e, quanto mais profundos e significativos, melhor.
As variáveis de contexto trazem uma complexidade com a qual muitos de nós não conseguem lidar. O casal de sociólogos alemães Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim apercebeu-se disso quando, nos anos 1990, lançou o livro O Caos Totalmente Normal do Amor, sobre o impacto dos avanços tecnológicos e da globalização nas relações amorosas e familiares.
Uma das principais provocações do livro assenta na ideia de que os relacionamentos que estabelecemos com os outros raramente obedecem a um padrão estável. E, como se não bastasse, a cultura individualista e aquilo que esperamos dos vínculos (papéis sociais associados ao casamento, parentalidade, a várias formas de amizade e tipos de amor) tornam vãs todas as tentativas de parar o vento com as mãos. Ou seja, não controlamos nada, embora tudo façamos nesse sentido.
“Esta obra está mais atual do que nunca”, assegura Daniel Cardoso, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e docente na Universidade Lusófona. “Ainda vivemos muito agarrados a um certo ideal do que a vida deve ser, o que constitui uma enorme fonte de sofrimento e de desilusão”, explicita o investigador em intimidades contemporâneas.
O mito da auto-suficiência que permeia as nossas vidas não ajuda. Daniel Cardoso acrescenta: “Convencemo-nos de que temos de ser super-produtivos, super-pais ou super-amantes para que alguém precise de nós, o que gera muita frustração.” Para onde quer que nos viremos, encontramos contradições como esta. As apps de encontros, por exemplo, “não são feitas para as pessoas se conhecerem, antes promovem o consumo de opções por ser essa a forma de darem lucro, como se a vida fosse uma montra”. Quem diz as apps, diz as redes sociais, os escaparates das livrarias e os sites de streaming, que se regem por essa lógica. “Na sociedade de consumo, de que fazem parte a performance e a superação, consumismo-nos uns aos outros e nós mesmos”, assinala o professor universitário. A saída deste beco implica, por isso, “abrir mão desse ideal de autossuficiência, que pressupõe que a pessoa, sozinha, vai conquistar o mundo.”
A beleza da interdependência
O amor perfeito só se aplica às flores. Pode amar-se, perdida e insensatamente, com sofreguidão, mas será isso amor? Tudo no amor é imperfeito e também envolve dor, mas sem ele nada feito. Nos anos 1980, Raymond Carver escreveu magistralmente sobre esse sentimento naquilo que tem de romântico, fraterno e platónico mas também de cru, combativo e dececionante, no seu livro de contos intitulado De Que Falamos Quando Falamos de Amor.
Na mesma década, a fenomenal Tina Turner imortalizou a canção de Graham Lyle and Terry Britten, What’s Love Got to Do with It referindo-se aos lugares mais sombrios do coração, em que nos ligamos a outros de formas mais tóxicas do que nutritivas, assentes na falha e no medo. Diz-se que a antítese do amor não é o ódio, mas sim o medo.
Os terapeutas de casais são os primeiros a dizer que a maioria dos problemas nos relacionamentos decorre de falhas na comunicação. Mark Travers, psicólogo americano formado na Universidade de Cornell, afirmou à revista Forbes que ser emocionalmente competente, cultivar a empatia e a compaixão e mostrar abertura para novas aprendizagens são os três pilares de um relacionamento enriquecedor e duradouro.
Nos casais interdependentes, cada um espera encontrar no outro um porto de abrigo e ser esse porto de abrigo também. Esta posição é subscrita por um conceituada terapeuta de casal belga. Esther Perel considera que a linguagem da intimidade se aprende e passa pelo treino de sete verbos (pedir, tomar, receber, dar, partilhar, recusar e brincar).
A presença de alguém que consegue ver, ouvir, espelhar e dar nome a tudo o que pode afetar e inquietar uma criança indefesa é o passaporte para que a intimidade e a vulnerabilidade possam revelar-se sem muros nem embaraços, abrindo alas ao amor, pela vida fora. Porém, nem sempre é assim. No mito, Narciso ficou refém da sua imagem no lago, sem chegar a conhecer as alegrias e a transcendência que existem no amor partilhado.
“Não há soluções fáceis”, salienta Daniel Cardoso, referindo-se ao tal caos normal do amor, “mais caótico agora e em mais áreas da vida”. O desafio passa por aprender a “identificar os padrões subjacentes a esse caos, bem como as sombras de ideais que nos pesam e lidar com isso de frente”.
Talvez seja desnecessário o recurso à analogia que costuma surgir neste contexto, a de “dar o peito às balas”. Talvez seja preferível usar uma linguagem mais amorosa, sem que isso represente uma fraqueza, mas antes uma força, tão subtil quanto poderosa.
Saber estar e poder ser
Os estudos sobre relacionamentos interpessoais realizados no espaço de um século sugerem que ainda tendemos a guiar-nos por mecanismos instintivos (a começar pelos estereótipos de género, que se associam, por exemplo, aos icónicos Barbie e Ken) e ancorados no desempenho, que pouco ou nada têm a ver com a definição mais ampla e profunda do amor, enquanto a cola que nos une e que é isenta de métricas e não cabe no formato (ou no sapato) do deve-e-haver.
Num mundo feito à medida das nossas zonas de conforto e ao conceito de posse (ter dinheiro, carro, casa, títulos, roupas de marca e, ainda, tudo aquilo que confere gratificação imediata), a presença plena de alguém, sem que envolva ter e fazer pode soar estranha ou parecer pouco. Porém, é no sentir e na presença que está o verdadeiro tesouro, o verdadeiro presente.
“Somos constantemente bombardeados com mensagens sobre o que devemos fazer e como devemos ser a melhor versão de nós mesmos”, afirma Catarina Lucas, psicóloga clínica e terapeuta de casal. “Na busca incessante da perfeição e de tudo aquilo que, supostamente, nos fará sentir melhor, rodeio-nos de muita coisa, o que nos traz exaustão e amplifica a sensação de vazio”, prossegue.
Por melhores que sejam as intenções, não é fazendo mais que vai aproximar-nos do amor que nos alimenta e eleva. A especialista costuma interpelar quem se sente à deriva nesta corrida para um lugar que nunca se encontra. “Quantas vezes estamos, verdadeiramente, sem que a nossa cabeça esteja noutro lado?”
No casal, em família, com os amigos ou, simplesmente, com quem se partilha espaço num dado momento, seja, ou não, nosso conhecido, o mais difícil é, geralmente, o mais simples: parar, ficar, sem ceder ao impulso de fazer, passando ao lado do aqui e do agora, como se ele não existisse ou porque não se lhe atribui a importância que tem. Porque o fazemos? “Porque estamos sempre em controlo, a ter de fazer tudo, quando a única coisa de que precisamos é ser amados e sermos esse lugar para alguém”, afirma a psicoterapeuta.
A solução passa por não querer estar em todo o lado ao mesmo tempo e criar espaço para pequenas coisas como “estar com os filhos a brincar, jantar ou petiscar com amigos”, pois é desses gestos e rituais que o afeto genuíno emerge.
O psicanalista Coimbra de Matos defendia que todos precisamos de mais amor, sinónimo de menos doença, porque é o motor da esperança. Catarina Lucas afirma ainda que temos tudo a ganhar ao baixar um pouco a guarda, ou seja, os nossos mecanismos de defesa: “O amor existe na vulnerabilidade, que implica deixar de lado as capas e a representação de papéis.” Se esta é a senha de acesso, porque não a usamos mais vezes? “A sociedade ainda está pouco preparada para se mostrar vulnerável.” Sabendo isto, nada como arriscar, dar o primeiro passo, fazer a experiência e tirar as suas próprias conclusões.