Foram muitas as conquistas ao longo de cinco décadas de democracia, no entanto há características na sociedade portuguesa que se mantêm quase inalteradas. João Pedro Henriques, jornalista, debruçou-se sobre duas: o elitismo na política e o machismo na justiça. Em “Revolução Inacabada – O que Não Mudou com o 25 de Abril” (edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, 96 págs.) faz o retrato de uma classe política dirigente que praticamente não abrange pessoas não licenciadas e com contacto com a pobreza. Já no sistema judicial, a entrada das mulheres na magistratura e a mudança para leis mais progressistas não alteraram um padrão de baixas condenações por crimes sexuais, cometidos sobretudo contra mulheres. Este é o Portugal onde a revolução pela igualdade está ainda inacabada.
“Ambos os fenómenos”, diz o autor, “são geradores de desigualdade”. No caso da política, “grande parte dos governantes não tiveram contacto com a pobreza, distanciam-se da pobreza”. Aliás, aponta, que “a capacidade de nos pormos no lugar do outro é meio caminho andado para resolver problemas”.
Excerto do livro:
“[…] Quem nunca conviveu com situações de pobreza dificilmente lhes será muito sensível; quem vive numa casa herdada dificilmente será sensível ao problema do aumento das rendas, dos preços das casas ou do aumento dos juros no crédito à habitação; um político que se movimenta há trinta anos guiado por um motorista dificilmente estará atento aos problemas da mobilidade; alguém que sempre teve folga para ter um bom seguro de saúde dificilmente se preocupa com as ruturas do SNS; quem pode sem dificuldades manter os filhos em escolas privadas não tem de se preocupar com a falta de professores no ensino público. E por aí adiante. A desigualdade portuguesa, com valores estatísticos que colocam o país claramente na famosa «cauda da Europa», resulta, em parte, como consequência do eterno elitismo governante lusitano. […] “O problema é o da tolerância face à desigualdade. A pobreza existe e permanece porque simplesmente não há empatia para transformar a sua erradicação num combate prioritário.”
E dá um exemplo: […] “O facto de Rabo de Peixe (São Miguel, Açores) ter suscitado em meados de 2023 uma enorme curiosidade nacional, devido à série portuguesa com o nome da freguesia que fez sucesso na Netflix, não ilude a sua existência como exemplo de comunidade onde, tanto para os seus habitantes como para os de fora, a pobreza é um estado natural, historicamente explicável e, sobretudo, irreversível, restando vivê-la como uma inevitabilidade. Rabo de Peixe, e o mesmo se aplica às comunidades ciganas, são ‘metáforas da nossa tolerância à desigualdade.’”
Em relação ao machismo na justiça, aponta que a “violência sexual e a violência doméstica” são causadoras de “desigualdade de género”. Uma mulher morre assassinada a cada dois dias, no entanto, alerta, os números dizem que “um em cada dez condenados por violência doméstica não tiveram pena de prisão atribuída”. Portugal, refere, é “um dos países mais desiguais da Europa”.
Excerto do livro:
[…] “Havendo ainda muito do tempo da ‘outra senhor’ que, embora eventualmente com outras roupagens, permanece vivo e atuante na sociedade portuguesa. Portugal continua a ter números notavelmente baixos de condenações por violência sexual. No capítulo específico da violência doméstica, os números encontram-se relativamente estáveis, embora, a partir de 2019, o número de condenados tenha passado de números na casa dos 1400/1500 para números na casa dos 1700 (1749, em 2021, segundo dados da Comissão de Igualdade de Género). De acordo com a mesma fonte, o que se mantém sempre mais ou menos igual são as ‘ocorrências por violência doméstica registadas pelas forças de segurança’ : 26 595 em 2015 e 26 520 em 2021). Do que também se depreende destes dados, a percentagem de condenações face às ‘ocorrências’ é baixa.”
João Pedro Henriques conclui, no final do ensaio, que “elitismo na política e machismo na justiça representam dois fenómenos de profunda inércia” na sociedade portuguesa que “se transportam de regime em regime”. Por mais que revoluções e golpes de Estado “lhes abalem as fundações”, estes “têm sobrevivido a todos os movimentos transformadores”. Ambos se alimentam e ambos geram o mesmo: desigualdade — ou desigualdade social (no caso do elitismo) ou desigualdade de género (no caso do machismo).