Se tem a sensação de que os seus dias se tornam baços, monótonos e sem inspiração e, em vez disso, começa a ser progressivamente acometido por estados de apatia e de desânimo, sobretudo no local de trabalho, saiba que não está só. É provável que esteja a ficar enferrujado. Estamos a falar da falta de energia vital que tolhe os movimentos e parece estar a tomar de assalto o mundo corporativo. Na língua inglesa, chamam-lhe “Rust Out”, um termo usado na indústria metalomecânica que se refere à deterioração de um material devido à ferrugem.
Na esfera profissional, já se diz que “o Rust Out é o novo Burnout”. Numa linguagem mais simples, depois de se tornar claro que matar-se a trabalhar até quebrar não é solução, ceder à lógica “as coisas são como são e não há nada a fazer, é lidar com isso” pode evitar o esgotamento e, até, conduzir à redefinição de metas e de novos caminhos, mas não é isenta de efeitos secundários.
A pandemia já lá vai e, com ela, a fantasia de que, passada a pior fase, iria ficar tudo bem. Para muitos, o isolamento social representou um período de reflexão forçada que teve consequências e se traduziu em fenómenos como a Grande Demissão ou a Desistência Silenciosa. Para outros tantos, as aspirações profissionais que não se cumpriram – apesar dos esforços nesse sentido – e a noção de que a vida organizacional mudou mas, no essencial, não se traduziu na ambicionada compatibilização entre vida pessoal e laboral nem em progressão na carreira, pode estar na base deste enferrujamento.
Como lidar, então, com esta espécie de adormecimento anímico que afeta o desempenho, não apenas no trabalho, mas nas outras áreas da vida?
Qual é o propósito disto tudo?
Em primeiro lugar, importa dizer que esta estratégia, nem sempre consciente, não afeta apenas a base da pirâmide, ou seja, quem está nos lugares de topo pode ser igualmente apanhado na curva. Por mais que se empenhem na conquista de metas com a melhor das intenções, é provável que chegue o dia em que se questionem: “Para quê, se não tenho tempo para gozar a vida nem me sinto feliz?”
Num artigo recente publicado na Harper’s Bazaar, o coach Eddie Whittingham, que criou a empresa GoFounder, explica como se instala o ‘rust out’: “Muitas vezes, metem mãos à obra com a intenção de criar um grande negócio, mas depois o mal-estar instala-se e percebem que criaram um um emprego para si próprios – em vez de construírem um negócio que os liberte da monotonia quotidiana.”
Quando uma pessoa começa a sentir-se enferrujada (o mesmo é dizer desconfortável no seu papel ou missão) isso pode querer dizer que está na hora de equacionar uma nova definição de sucesso? Como sair deste imbróglio? Desenferrujar (ainda) é possível?
Depende de muitos fatores, desde a bagagem que se traz às questões de personalidade, passando pela disponibilidade para ousar ver a realidade sob um novo prisma. Especializada em Comunicação e Imagem e o rosto da World Failurists Congress (evento para celebrar o falhanço e desmistificar o sucesso), Sónia Teles Fernandes começa por aludir aos produtos multiusos que protegem o metal contra a oxidação e corrosão, repelem a humidade e lhe devolvem o brilho.
Não havendo um equivalente para os humanos, é natural que se sinta “o desgaste dos dias, a falta de perspectiva, a sensação de estar a perder algo melhor e a ver que o nosso esforço é inútil e desperdiçado”. É o típico “vai-se andando” sem rumo algum, acrescenta.
Tal como as fórmulas dos produtos, que são numeradas, sugerindo que as versões anteriores falharam e a nova é que é, a coach deixa uma sugestão: “Se a ferrugem da vida vos pesa – situações de pura desmotivação, de falta de perspectiva e de cansaço – não aumentem a carga com os fantasmas dos falhanços do passado; façam as pazes com eles e deixem-nos para trás enquanto decidem como seguir em frente.”
Melhor dizer do que fazer, poderão pensar os mais céticos. Porém, essa atitude também não é construtiva até porque, no final do dia, a questão subsiste: “O que é que eu faço à minha vida?”
Sinais dos tempos
O desafio é descodificar os sinais de desencanto, desconforto, apatia e tédio e fazer alguma coisa acerca disso, o que envolve algum trabalho (termo que funciona como estímulo aversivo para muitos, nesta fase).
Sair do limbo do “nim” (nem não nem sim), ou de uma certa estagnação, pode implicar sair da zona de (des)conforto e atrever-se a pedir ajuda de terceiros, certificados para esse fim (psicólogo, coach, mentor), mas é capaz de valer o esforço. E não tem de ser como na canção My My, Hey Hey (Out of the Blue), de Neil Young (“It´s better to burn out than it is to rust”, ou seja, é melhor ficar exausto do que enferrujar). Esta referência consta, de resto, num artigo do Oprah Daily, divulgado em agosto, em que se explica a possível origem do fenómeno, através de quem estudou o assunto, como é o caso de Teena Clouston.
A docente da Faculdade de Ciências Biomédicas e da Vida, na Universidade de Cardiff, no Reino Unido, é especialista em terapia ocupacional e bem-estar e autora do estudo Challenging Stress, Burnout and Rust Out: Finding Balance in Busy Lives e afirma que este sentimento de desligamento, apatia e alienação “está diretamente relacionado com a falta de satisfação ou propósito na vida”.
Nesse sentido, o enferrujamento é comparável ao FOMO (fear of missing out, ou medo de ficar de fora): “A pessoa vai corroendo aos poucos sem que consiga impedi-lo.” Isto aplica-se à vontade de querer algo melhor para fazer do que ficar no loop das tarefas monótonas que já conhece (e que só contribuem para aumentar o tédio).
Ora, isto não pode ser bom, já que resulta em absentismo e outros tipos de fuga ao mal-estar, seja ficando mais permeável a distrações, consumo de substâncias e adições (a redes sociais e afins), o que tem claras implicações no trabalho (menor rendimento ou criatividade) e na vida pessoal e social (desinteresse, desinvestimento afetivo).
A este respeito, Aristides Ferreira, docente no Departamento de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional do ISCTE, tem uma palavra a dizer: “Depois da pandemia, as pessoas fecharam-se mais no seu mundo e, no campo profissional, se desiludiram face às expetativas que tinham em relação à função, às chefias e aos colegas.”
De certa forma, isso era esperado, uma vez que “somos um dos países mais burocráticos do mundo, o que criou um conflito entre a prioridade do bem-estar e aquilo que o trabalho oferece”.
Para o diretor do mestrado em Recursos Humanos e Consultadoria Organizacional, a sociedade que temos espelha nas organizações: “O materialismo, a frieza das relações humanas e o aumento da competição, gera um vazio enorme que oxida e enferruja as pessoas.”
Desenferrujar e recuperar o brilho
O que se segue, uma vez que já não se aceita este estado de coisas como antes? “Se a progressão na carreira tarda em chegar e não se concretiza o ideal que se construiu naqueles meses de isolamento, a tendência é pensar ‘não quero entrar nesta luta, deixem-me tirar férias quando quero para estar mais tempo com os meus’, e reformula-se o ideal de vida”.
Autonomia, mestria e propósito: os três fatores que promovem o bem-estar no trabalho, segundo os estudos em Ciências Sociais
Entretanto, como refere um artigo publicado no ano passado no meio de comunicação australiano The Conversation há empregadores que começam a apostar em promover três fatores de bem-estar nas políticas das empresas, que foram identificados pelos cientistas sociais: conferir mais autonomia aos trabalhadores para que possam decidir como trabalham e o que fazem; permiti-lhes progredir, desenvolver competências e abraçar novos desafios; e conferir propósito e significância ao que eles fazem, de forma a sentirem que contribuem para um bem maior.
Nem todos os empregadores estarão em pé de igualdade para adotar estas políticas ou estimular a criatividade e a inovação na gestão de pessoas. Em qualquer dos casos, é bom lembrar que o tédio não é necessariamente uma coisa a evitar a todo o custo, até porque faz parte da vida e, não raras vezes, é um catalisador para voos e soluções, como a História se encarrega de mostrar.