Em janeiro de 2020, Till Lindemann publicou um poema em que fantasia sobre violar uma mulher inconsciente depois de lhe pôr tranquilizantes no copo de vinho. O poema Quando tu Dormes está no livro 100 Poemas (100 Gedichte, no original), que a Amazon arruma na secção da poesia erótica. Na capa da edição alemã, os algarismos estão dispostos de maneira a formar um grande pénis.
Nesse mesmo ano, o excêntrico vocalista dos Rammstein protagonizou um vídeo pornográfico para promover a canção Till the End, do seu projeto de música a solo. Na altura, as reações dividiram-se entre considerá-lo uma provocação violenta ou uma expressão da liberdade artística.
É fácil encontrar esse vídeo numa simples pesquisa na Internet, mas é difícil assistir às relações sexuais violentas que Till Lindemann mantém com um grupo de jovens mulheres, frente às câmaras. Mais agora que se fala na hipótese de essas mulheres não serem atrizes – teriam sido recrutadas numa “row zero”, uma “fila zero”, mesmo junto ao palco, onde determinadas fãs podiam assistir aos concertos da banda alemã.
Três anos depois, essa fila, que dava acesso a festas privadas antes e depois dos concertos, já não existe. Como é habitual no mundo dos concertos, agora junto aos palcos onde a banda alemã tem atuado, um pouco por toda a Europa, concentram-se os fãs que ali acorrem mal abrem as portas do recinto. O que, no caso do Estádio do Benfica, em Lisboa, será às 6 da tarde.
Dez anos depois de terem tocado em Portugal, os Rammstein regressam para um concerto esgotado, ansiosamente aguardado por milhares de fãs, alguns deles organizados numa “comunidade oficial”. Mas, poucas horas antes de começar o espetáculo de música, pirotecnia e provocações que ainda este fim de semana maravilhou 50 mil pessoas em Madrid, é muito difícil esquecer este parágrafo do longo artigo de investigação que o jornal alemão Die Welt publicou a 4 de junho:
“As pessoas da indústria dizem que Lindemann é um viciado em sexo que precisa de mulheres muito jovens ‘que nunca teve antes’ em todos os espetáculos. De acordo com testemunhas ligadas à banda, a situação chegou a um ponto em que ele até sai do palco para fazer sexo rápido durante os concertos. As raparigas são fornecidas por [Alena] Makeeva.”
A descrição era feita no presente, embora as acusações contra Till Lindemann remontassem ao final de maio. Na madrugada do dia 25, a irlandesa Shelby Lynn, de 24 anos, fez uma publicação no Twitter que deixou o mundo de sobreaviso: “Eu sou a rapariga que foi drogada [spiked] nos Rammstein”, escreveu, prometendo partilhar imagens a provar as suas acusações.
Nas horas e no dias seguintes, Shelby Lynn foi publicando, no Twitter e no Instagram, fotografias de grandes nódoas negras nas coxas, nos braços e nos pulsos. E print screens de conversas por Whatsapp incriminatórias. Escreveu que acredita ter sido drogada antes de o vocalista da banda alemã, de quem era fã desde os 15 anos e que nunca vira ao vivo, querer fazer sexo com ela durante o concerto em Vilnius, na Lituânia, a 22 de maio.
O mundo reagiu atónito e dividido. A irlandesa recebeu de imediato a solidariedade de muitas outras vítimas que sofreram abusos sexuais depois de terem sido drogadas, mas também muitas críticas e ameaças. A mais comum: ela não passaria de alguém à procura de atenção.
O Die Welt não teve outro remédio se não avançar com a reportagem que andava a preparar há meses. Em outubro, o jornal já fora abordado por alegadas testemunhas, com relatos e contactos de supostas vítimas. E, em novembro, a equipa de jornalistas entretanto formada reunira uma série de casos de jovens que apontavam o dedo a Till Lindemann e a Alena Makeeva, a mulher de origem russa que as recrutaria para terem sexo com ele.
Os nomes vão mudando, mas as histórias assemelham-se tanto no modus operandi como nos detalhes. E são consistentes, garante o jornal.
Segundo o Die Welt, era Makeeva, que se auto-denominava “diretora de casting”, quem fazia os convites para a “row zero”. Contactava as fãs através do Instagram, dirigia-as para um grupo privado no Whatsapp e apresentava-lhes as condições para acederem a uma experiência VIP que incluía festas antes e depois dos concertos, muitas vezes só com Till Lindemann presente: “Maquilhagem cuidada, cabelo penteado, vestidos de cocktail em cores vivas e estampados florais. Tudo em preto não, por favor.”
Shelby Lynn contou que, quando ela e as outras jovens do grupo de Whatsapp chegaram ao Vingis Park, em Vilnius, um elemento da produção pediu-lhes que se colocassem lado a lado, para poder filmá-las. Antes do concerto, foram todas convidadas para uma festa onde havia vinho espumante, champanhe e vodka, alguma comida e bebidas energéticas. Ela serviu-se sozinha uma primeira vez, mas depois aceitou uma segunda bebida.
Quando lhe sugeriram conhecer Till Lindemann “durante o concerto”, ficou sem saber o que significaria isso. Segundo ela, explicaram-lhe que ele era um cavalheiro: não ia haver sexo, não tinha de se preocupar. Pouco depois, o músico apareceu na festa, distribuiu shots de tequila, aconselhou-as a beberem depressa e atirou o seu copo vazio contra a parede.
A irlandesa não sabe exatamente o que lhe aconteceu a seguir. Só sabe que se sentiu tonta, sentou-se num sofá e acabou na “row zero” a pedir a uma miúda que estava ao seu lado para não a perder de vista. “Nunca me tinha sentido assim na minha vida”, contou ao Die Welt, e não era do álcool.
Durante o concerto, foram buscá-la, levando-a até uma pequena sala sob o palco. Quando o vocalista entrou, estava sentada no chão, com os braços à volta dos joelhos. Ele terá ficado zangado, gritando que alguém da sua equipa lhe dissera que ela queria ter sexo.
Se Shelby acabou por não ser abusada por Lindemann, várias outras jovens não tiveram a mesma sorte.
Sarah J. diz ter estado numa after-party depois de ter sido filmada e fotografada por elementos da produção dos Rammstein, durante o concerto em Njimegen, nos Países Baixos, em 2022. À chegada, ela e outras jovens entregaram os seus telemóveis e depois não se lembram do que lhes aconteceu.
Linda K. conta ter sido drogada pela produção da banda, antes de ter mantido relações sexuais com o vocalista, num quarto de hotel. Ainda em estado de choque e incapaz de tornar o seu testemunho público, diz ter acordado ferida e com hemorragias vaginais intensas.
Todas passaram aos jornalistas as mensagens trocadas no Whatsapp com Alena Makeeva, além de mensagens por voicemail, vídeos feitos durante os concertos em que se vê jovens “com ar perdido” e relatos de outras alegadas vítimas de abuso sexual por parte do vocalista dos Rammstein. Os repórteres reuniram provas e entrevistaram dezenas de testemunhas.
Till Lindemann está a ser investigado pelas autoridades alemãs. Mas, na prática, para já, Shelby Lynn ainda só conseguiu que a ministra da Família alemã decretasse o fim da “row zero”. “Os jovens, em particular, devem ser mais bem protegidos contra as agressões”, disse Lisa Paus, que sugeriu imediatamente a criação de zonas de proteção para as mulheres nos concertos, bem como a presença de equipas capazes de intervir em caso de agressão sexual.
Logo no dia 3, a banda partilhou um comunicado no Instagram: “As publicações dos últimos dias causaram irritação e perguntas entre o público e especialmente entre os nossos fãs. As acusações atingiram-nos a todos de forma muito dura e levamo-las muito a sério. Aos nossos fãs dizemos o seguinte: É importante para nós que se sintam confortáveis e seguros nos nossos espetáculos – em frente e atrás do palco. Condenamos qualquer tipo de agressão e pedimos-vos: Não participem em pré-julgamentos públicos de qualquer tipo em relação àqueles que fizeram acusações. Eles têm direito ao seu ponto de vista. Mas nós, a banda, também temos o direito de não sermos julgados.”
Apesar da presunção de inocência, numa sondagem publicada no dia 6, pelo jornal alemão Bild, a maioria dos inquiridos defendeu que a digressão europeia dos Rammstein fosse cancelada. Até agora, mantiveram-se todos os concertos, e apenas na Suíça houve uma manifestação contra a sua atuação.
A banda contratou uma empresa de advogados e uma equipa de gestão de crise. Não foi a primeira vez que teve de o fazer, e por causa do vocalista. Em 2019, Till Lindemann foi acusado de agredir um homem no bar de um hotel alemão – depois de trocarem insultos e de uma discussão acesa, o cantor acabou por lhe dar uma cotovelada na cara, partindo-lhe o nariz.
Há três semanas, a sua editora, a Kiepenheuer & Witsch, anunciou que já não trabalha com ele. Quanto ao futuro da banda, é incerto, mas o concerto não. Em Lisboa, as portas abrem às 18h, lembram na comunidade oficial de fãs portugueses.