Quando a nossa bandeira deu uma polémica incendiária

Quando a nossa bandeira deu uma polémica incendiária

Ver um País em festa, de Norte a Sul, vestido de verde-rubro, como aconteceu após a seleção portuguesa de futebol conquistar o Euro 2016, era inimaginável depois da revolução do 5 de Outubro de 1910, que derrubou a Monarquia Constitucional e implantou a República. Havia que arquitetar uma nova bandeira, e desencadeou-se uma tremenda polémica que opunha os “verdes-rubros” aos “azuis e brancos”. Chegou-se ao ponto de militares se recusarem a jurar a bandeira nacional tal como hoje a conhecemos.

Em 1910, passados os primeiros dias de euforia revolucionária, o Governo provisório republicano, presidido por Teófilo Braga, político e intelectual, apressou-se a iniciar o processo de determinação dos símbolos em torno dos quais se pudesse gerar a nova unidade nacional. O hino era consensual: seria a marcha patriótica A Portuguesa, composta contra o Ultimato britânico de 1890, com música de Alfredo Keil e letra de Henrique Lopes de Mendonça. Com a nova bandeira, porém, tudo foi diferente. Quando começaram a correr rumores de que o Conselho de Ministros se inclinava para a bandeira azul e branca, a combinação cromática da Monarquia Constitucional, mas obviamente expurgada das armas reais, que seriam substituídas por símbolos republicanos, uma força poderosa interveio, para travar tal pretensão – a Carbonária, sociedade secreta libertária e anticlerical, que ganhara enorme influência na revolução. 

O debate foi muito aceso e envolveu não só os políticos e os intelectuais como também a própria sociedade civil

Nuno Severiano Teixeira

Perante o impasse, o Governo provisório decidiu constituir uma comissão independente para estudo e desenho da bandeira. Essa comissão formou-se com cinco elementos, todos eles figuras de relevo da vida nacional: o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o romancista Abel Coelho, o jornalista e conhecido republicano João Chagas, e ainda dois destacados operacionais da revolução de 5 de Outubro, o primeiro-tenente Ladislau Pereira e o capitão Afonso Palla. 

Seguimos aqui a investigação aprofundada sobre o tema feita pelo professor universitário Nuno Severiano Teixeira, no âmbito da sua obra Heróis do Mar – História dos Símbolos Nacionais (ed. A Esfera dos Livros). O também diretor do Instituto Português de Relações Internacionais, da Universidade Nova de Lisboa, e ex-ministro da Administração Interna (no 2.º Governo de António Guterres) e da Defesa Nacional (no 1.º Executivo de José Sócrates), lembra que a bandeira içada na Câmara Municipal do Porto, na manhã de 31 de janeiro de 1891, quando decorria a primeira (e frustrada) revolta para a implantação da República, era verde e vermelha. “Totalmente vermelha com um círculo verde ao centro, a que se juntavam as legendas referentes ao centro republicano a que pertencia”, especifica.

“O sonho dos nossos olhos”

Apesar do fracasso daquela revolta, “a bandeira ‘verde-rubra’ torna-se para os republicanos a marca fundamental, o símbolo da República”, escreve Nuno Severiano Teixeira. E é tanto assim que, “quando chega a jornada revolucionária de 3 a 5 de Outubro de 1910, que havia de implantar a República, a bandeira levantada pelos regimentos e navios revoltados era verde-rubra (bipartida, vermelha junto à tralha e a parte maior verde; esfera armilar de ouro assente em fundo azul; estrela de prata com resplendor em ouro)”, nota o investigador. “Foi esta a bandeira de Machado Santos na Rotunda e que, vitoriosa a revolução na manhã de 5 de Outubro, seria hasteada em todos os quartéis e que finalmente também substituiu a bandeira azul e branca no alto do Castelo de São Jorge.”

Depois, amenizada a exaltação revolucionária, aconteceu o inesperado: a comissão da bandeira recebeu mais de 40 projetos para o novo símbolo nacional. E bem diferentes uns dos outros, refletindo “o debate muito aceso que envolveu não só os políticos e os intelectuais como também a própria sociedade civil”, diz, à VISÃO, Nuno Severiano Teixeira. “Houve um bom terço de projetos azuis e brancos, outro terço de projetos verdes e rubros e um terceiro conjunto de projetos de conciliação, com as quatro cores”, pormenoriza o professor universitário.

Na defesa do azul e branco destacava-se o poeta Guerra Junqueiro, figura republicana de relevo. Igualmente para ele, diz o investigador, “a bandeira deve traduzir a alma da nação e também considera que as cores são o problema fundamental”. Num longo artigo publicado na Imprensa lisboeta, Guerra Junqueiro justificou as suas razões e expôs os seus pontos de vista. Às tantas, escrevia que, “ao proclamar-se a República das varandas da Casa do Município, ladeavam o estandarte vermelho e verde duas bandeiras azuis e brancas”

“A bandeira azul e branca, com o seu escudo e a sua disposição, é a única que o preto de África conhece como representativa da soberania de Portugal”, argumentava Sampaio Bruno, fundador do chamado movimento da “Filosofia Portuguesa”

No “tom poético” que o caracterizava, como nota Nuno Severiano Teixeira, avançou assim para o modelo da bandeira que defendia: “O Campo azul e branco permanece indelével. É o firmamento, o mar, o luar, o sonho dos nossos olhos, o êxtase eterno das nossas almas. Os castelos continuam em pé, inabaláveis, de ouro de glória, num fundo de sangue ardente e generoso… A cruz do calvário, a das cinco chagas, essa não morre, é o abraço divino, o abraço imortal… A coroa do Rei, coroa de vergonhas, já o não envilece, o não vislumbra. No brasão dos sete castelos e das quinas erga-se de novo a esfera armilar da nossa glória… E ao símbolo augusto do nosso génio ardente e aventuroso, coroemo-lo enfim de cinco estrelas em diadema dos cinco astros de luz vermelha e verde (…) dessa manhã heróica da rotunda.”

Figuras republicanas conhecidas da vida nacional barricavam-se nos dois lados da efervescente polémica, e na trincheira “azul e branca” também estava, por exemplo, Sampaio Bruno, considerado o fundador do chamado movimento da “Filosofia Portuguesa”. Para ele, a bandeira devia ser “a mesma, somente tirando-se-lhe a coroa”, que no seu projeto era substituída “por uma estrela de ouro”. As razões que invocava eram “sumárias e bem menos poéticas do que as de Junqueiro”, nota, com ironia crítica, Nuno Severiano Teixeira. Argumentou Sampaio Bruno: “A bandeira azul e branca, com o seu escudo e a sua disposição, é a única que o preto de África conhece como representativa da soberania de Portugal.”

Intransigente defensor da bandeira verde-rubra, o presidente do Governo provisório, Teófilo Braga, haveria de também publicar um polémico e surpreendente artigo na Imprensa. Por um caminho ínvio, “anatematiza o azul e branco e procura legitimar, com razões não ligadas ao republicanismo, as cores republicanas”, diz o investigador. A bandeira vermelha empunhada por Afonso III na conquista do Algarve aos mouros, em 1249, e o verde do “pendão vencedor em Aljubarrota”, em 1385, bastavam para “justificar as cores republicanas”, teorizava Teófilo Braga.

Revolução e filosofia

“A simbologia das cores da bandeira republicana não é verdadeiramente aquela”, comenta, à VISÃO, Nuno Severiano Teixeira. “O que os republicanos queriam simbolizar era, no vermelho, a cor da bandeira das revoluções populares de 1848, e da Comuna de Paris, em 1870”, diz. Já o verde remete para o francês Auguste Comte, considerado o primeiro filósofo da Ciência e que, no século XIX, formulou a teoria do Positivismo, que advogava o altruísmo e a preocupação com o bem público, coletivo e individual, em oposição expressa à teologia e à metafísica. “Comte entendia que o verde deveria ser a cor das nações positivistas”, explica o professor universitário. Para sintetizar: “Na minha interpretação, o vermelho é a matriz política democrática e o verde é a matriz cultural positivista do republicanismo.”

Ideologia à parte, falta falar dos “projetos de conciliação”, com as quatro cores, a maior parte dos quais delirantes. A propósito, Nuno Severiano Teixeira excetua aqui, “tanto pela coerência da sua justificação teórica, como pelo seu equilíbrio e harmonia estéticos”, o projeto do poeta Delfim Guimarães, cuja execução gráfica pertenceu ao pintor Roque Gameiro. “Houve especialistas em heráldica a defender que o verde e o vermelho não deviam estar juntos um ao outro, porque são cores que precisam de uma cor neutra, o branco, para as separar”, conta o investigador. “E o projeto de bandeira de Delfim Guimarães e Roque Gameiro tem essas características: é verde e vermelha, mas entre essas cores existe uma faixa branca, sobre a qual assenta a esfera armilar. Havia quem dissesse que este projeto, do ponto de vista heráldico, era o mais correto.”

Mas os republicanos mais radicais aceleraram o processo a seu favor. A comissão enviará o seu projeto de bandeira (tal como hoje a conhecemos) para apreciação do Conselho de Ministros a 6 de novembro de 1910. “Após longa e disputada polémica, e para gáudio dos defensores do ‘verde-rubro’ e indignação dos partidários do ‘azul-branco’, a 29 de novembro o Governo aprova o projeto da comissão, ao que se soube pela maioria de um voto”, diz o professor universitário. “De imediato, e antes mesmo que pudesse ser aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, o Governo provisório estabelece por decreto o dia 1 de Dezembro como sendo o da Festa da Bandeira.”

A polémica, contudo, tornou-se ainda mais violenta. “Em Lisboa, Porto e por todas as cidades de província multiplicam-se os projetos para a nova bandeira”, conta Nuno Severiano Teixeira. “Na Imprensa periódica, em croquis afixados em clubes políticos, livrarias, tabacarias e outros estabelecimentos comerciais, em conferências e sessões públicas, desde as salas de teatro à Sociedade de Geografia, os diferentes autores divulgam e fazem a defesa empenhada dos seus projetos. Acreditava-se ainda que a Assembleia Constituinte podia votar um parecer contrário e os partidários do ‘azul-branco’ reclamavam com insistência um plebiscito.” Tudo em vão, como a História registaria.

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