O que é um médico? Um veterinário que só sabe tratar de uma espécie. Esta piada recorrente entre veterinários sublinha a elevada especialização dos médicos dos humanos e a abordagem multiespécies dos médicos veterinários. A vice-presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos Veterinários, Catarina Lavrador, 53 anos, também não resiste a recorrer à mesma graça para destacar a importância de médicos e veterinários partilharem conhecimento sobre doenças que afetam tanto os seres humanos como muitas outras espécies animais. É isso mesmo que defende a zoobiquidade, termo cunhado pela cardiologista Barbara Natterson-Horowitz e pela jornalista de ciência Kathryn Bowers, que simboliza uma fusão entre as medicinas evolutiva, humana e veterinária. A médica norte-americana é uma das convidadas da conferência Zoobiquidade: A Saúde Feminina Através das Espécies, agendada para segunda-feira, 4, nas instalações da Ordem dos Médicos, em Lisboa. No mesmo dia, é lançada a edição portuguesa do livro Zoobiquidade: O que os animais nos podem ensinar sobre sermos humanos (Ed. Pergaminho), do qual é coautora. À VISÃO, Catarina Lavrador, também docente da Universidade de Évora, sublinha a importância de o encontro ser coorganizado pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Médicos Veterinários, prova de que este diálogo também já começou em Portugal, à semelhança de outros países.
Por que razão é importante médicos e veterinários conversarem?
Os seres humanos e os animais, ao partilharem o mesmo ambiente e estando expostos a fatores idênticos, naturalmente, apresentam as mesmas vulnerabilidades, daí este conceito muito antigo a que foi dado o nome de “uma só saúde”. Basicamente, a saúde humana – física e mental – a saúde animal e a saúde dos ecossistemas estão intrinsecamente ligadas. Ao longo da história da Humanidade, sempre se soube disto. O que aconteceu foi que, com a evolução da medicina, ao nível de fármacos, por exemplo, estas duas áreas – a saúde humana e a saúde animal – foram-se afastando. Foi como se o ser humano, de repente, passasse a achar que era invencível e que conseguia estar protegido da natureza e do meio ambiente, mas nós sabemos que isso não é possível. Na verdade, os médicos de saúde pública, os veterinários, os biólogos e muitas das pessoas que trabalham na área ambiental têm vindo a alertar para tudo aquilo a que estamos a assistir e que culminou com a pandemia de covid-19. É um chavão dizê-lo, mas esta pandemia foi um sinal de alerta da natureza no sentido de chamar a atenção para o facto de os microrganismos não terem uma espécie em particular como alvo, eles adaptam-se, por uma questão de sobrevivência, a determinada espécie, e, se ela deixar de ser interessante, rapidamente tentam adaptar-se a outra.
Uma grande parte das doenças que nos afetam são zoonoses, ou seja, provém dos animais, a covid-19 é um desses exemplos. Essa é mais uma evidência da importância deste diálogo entre as várias medicinas?
Atualmente, calcula-se que dois terços das doenças infeciosas emergentes são zoonoses. Se conseguirmos controlar o nosso contacto com animais selvagens, estamos menos expostos à possibilidade de as zoonoses chegarem até nós e de estes microrganismos fazerem aquilo que se chama de spill-over [saltar a barreira das espécies]. Agora, a partir do momento em que intensificamos a destruição de florestas, os animais ficam num espaço bastante confinado, cada vez mais próximos de nós, e a probabilidade deste salto dos microrganismos de uma espécie para a outra é maior, isto a par de outros fatores muito importantes, como as alterações climáticas e a globalização. Com a globalização, e a covid-19 é um bom exemplo disso, numa questão de horas as pessoas transportam estes microrganismos para o outro lado do mundo e, num instantinho, temos o planeta todo contaminado. As alterações climáticas agudizam, em particular, as doenças transmitidas por vetores, como os mosquitos. Nós conseguíamos ter estas doenças limitadas a algumas latitudes, mas com o aumento das temperaturas e, em alguns casos, da humidade, já há vetores nas regiões polares, que atingem populações que nunca estiveram expostas a essas doenças e, por isso, têm uma vulnerabilidade acrescida. É importante frisar que as zoonoses não são uma novidade, elas não surgiram com a covid-19, existem há séculos. Os médicos veterinários têm um papel muito importante porque não só são os primeiros a lidar com estas doenças nos animais, como fazem muitos alertas, estando muito ligados à interface da saúde pública.
Mas a chamada zoobiquidade vai muito além das zoonoses, certo? O objetivo é fomentar o diálogo acerca das semelhanças entre a saúde dos humanos e a dos animais?
Sim, este conceito de zoobiquidade vai muito além das zoonoses. Não estamos a falar apenas dos agentes das doenças infeciosas, estamos a falar, por exemplo, de bastantes tipos de cancro em que a manifestação da doença – quer a nível molecular, de sintomatologia ou de tratamento – é muito semelhante em humanos e nos animais. E nós podemos aprender muito, já não se trata da aprendizagem que resulta de testarmos alguma coisa em ratinhos e, depois, extrapolarmos para a medicina humana. Não, trata-se de observar e partilhar com os médicos aquilo que se passa em modelos de doença natural, ou seja, um cão que tem um determinado tipo de cancro, que não é induzido, é uma doença espontânea. Isso é muito interessante enquanto partilha de conhecimento, porque permite que ambas as saúdes – humana e animal – beneficiem. Portugal criou, agora, uma rede de partilha de informação, quase em tempo real, nesta área da oncologia, a Vet-Onconet. Nos EUA, também já existe um consórcio há alguns anos. No entanto, no quotidiano, a partilha de informação ainda é um bocadinho limitada e é isso que estas conferências pretendem incentivar, assim como a criação, no caso da saúde pública, de redes de vigilância partilhadas para as zoonoses, por exemplo, ou para a pesquisa de vetores. Isto não envolve apenas médicos e veterinários, os engenheiros do ambiente, os biólogos e muitos outros desempenham igualmente um papel importantíssimo, porque movem-se entre a sobreposição destas três áreas: o ambiente, a saúde animal e a saúde humana.
O que está a dificultar uma maior partilha de conhecimento entre médicos e veterinários?
Basicamente, é uma questão de mudar o mindset e de observar o mundo através de uma lente que permite olhar para as espécies que estão ao nosso lado. Para nós, médicos veterinários, isso faz parte do nosso ADN. Nós não estudamos apenas uma espécie. Há uma graça que às vezes se diz que é: Como se chama um veterinário que só trata uma espécie? É um médico. No fundo, esta piada chama a atenção para o facto de, para nós, isto ser muito óbvio, porque estudamos sempre sob este prisma multiespécies. No caso dos médicos, já não é assim. Claro que o seu elevado grau de especialização traz muitos benefícios, porque permite avançar muitíssimo na preservação da saúde humana, mas não podemos deixar cair a ideia de que esta é a nossa casa comum, e os animais, por via do seu comportamento, dos locais onde vivem, dos seus hábitos alimentares, estão mais expostos ao ambiente. Na verdade, o diálogo tem evoluído, mas falta mais articulação. Não é apenas para o ser humano que o uso irresponsável de antibióticos é um problema, este é só um exemplo que demonstra o quão imprescindível é conseguirmos trabalhar em conjunto. Esta conferência está a ser organizada pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Médicos Veterinários e nós achamos que isso é muito relevante, porque queremos reforçar esta mensagem de que já há um trabalho conjunto com um objetivo comum.
Seria importante rever os currículos dos cursos de Medicina de forma a incluir mais noções de biologia e de veterinária?
Sem dúvida. A última comunicação desta conferência é sobre repensar a educação médica para o século XXI. Como podemos estimular os jovens médicos a olharem para as outras espécies? Não estou, de forma nenhuma, a assumir uma posição de superioridade; mas, de facto, os veterinários já estão mais alerta para esta abordagem. No futuro, o que podemos melhorar na formação de base para estimularmos este diálogo entre as várias áreas do conhecimento? Isto no ensino superior, mas há alguns movimentos, a nível mundial, que apostam, até, numa fase mais precoce do ensino, na educação primária e secundária, porque se entende que também é muito importante chamar a atenção para a relevância de preservar a saúde do planeta nessas idades.
Na verdade, a investigação científica começa, muitas vezes, por testes em animais. Esse não é um sinal de que este diálogo sempre existiu?
Essa abordagem tradicional da investigação científica beneficia, quase exclusivamente, a saúde humana. A zoobiquidade não assenta tanto na investigação científica pura e dura, mas mais na utilização de dados médicos, o que é substancialmente diferente. Estes dados médicos baseiam-se em modelos espontâneos de doença, enquanto os testes em animais são modelos de doença induzida. São duas visões muito diferentes, apesar de serem complementares. Procura-se, cada vez mais, não assentar a investigação científica em ensaios clínicos com animais, apesar de haver situações em que isso é impossível. Resumindo, diria que a zoobiquidade aposta mais em dados clínicos do que em dados de investigação.
A conferência foca-se na saúde feminina através das espécies. Qual foi a razão para optar por este tema?
Está relacionado com facto de se ter vindo a perceber que as fêmeas estão muito mais expostas ao impacto, por exemplo, das alterações climáticas provocadas pela contaminação ambiental, não só as fêmeas animais, mas também as da espécie humana. Inclusivamente, no que diz respeito à resistência aos agentes microbianos, o sexo feminino é mais vulnerável, seja pelos seus hábitos ou pelos papéis sociais que desempenha, tendo ou não passado pela experiência da maternidade. O exemplo da maternidade é óbvio, na medida em que, por via da amamentação, as mães podem fazer chegar tudo aquilo a que estão expostas aos seus descendentes. Ao nível da fertilidade, os efeitos são brutalmente evidentes, porque muitos dos contaminantes ambientais são aquilo a que se chama de disruptores endócrinos e têm um grande impacto nas fêmeas. Contudo, mesmo uma fêmea sem descendência, em particular da espécie humana, está sempre mais vulnerável.