O fiel amigo do Homem tem uma história para contar – em que o tamanho faz toda a diferença – e, ao que parece, estava incompleta. Já se sabia que a domesticação canina e a seleção de raças manipulada pelos humanos resultaram em variações de tamanho surpreendentes, até 40 vezes, do maior ao menor porte. Há década e meia que também era claro, na comunidade científica, o papel da mutação do gene IGF-1 na variação do tamanho dos cães. Um estudo recente, publicado na revista Current Biology, permite afirmar que esta variação genética, responsável pela regulação do tamanho dos cães modernos, e os seus antecessores, teve origem em lobos que existiram há milhares de anos, na Idade do Gelo.
Uma pequena revolução
A aventura começou durante o confinamento, em 2020, quando um aluno pós-doc da INSERM-Universidade de Rennes, em França, começou a ler sequências genéticas em modo reverso, ou seja no RNA. Jocelyn Plassais descobriu duas variantes numa porção de RNA. A equipa da geneticista Elaine Ostrander, do Instituto Nacional de investigação do Genoma Humano, em Maryland, nos Estados Unidos, que fora responsável, há 15 anos, pela descoberta do papel do IGF-1 na variação de tamanho dos cães domésticos, analisou os genomas de 230 raças modernas de cães e, ainda, de canídeos selvagens (lobos e coiotes), num total de 1 400 amostras.
Ao compararem a mutação com o tamanho dos animais, descobriram uma variante numa parte de ADN que codifica o RNA longo não codificante, uma molécula envolvida no controlo dos níveis da proteína IGF-1 (fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1, produzido no fígado e tendo um papel no crescimento e no desenvolvimento muscular).
Na pesquisa, estudaram os dois alelos da variante e encontraram dois grupos distintos: os animais com peso inferior a 15 quilos – cães, coiotes, chacais, raposas – tinham duas cópias de uma forma do gene, mas havia uma forma alternativa, comum nos canídeos com mais de 25 quilos, que também tinham níveis mais elevados de IGF-1 no sangue.
Um parente muito antigo
Partindo do pressuposto que a variação do gene constituiu uma vantagem adaptativa para a existência de lobos de maior porte, há mais de 50 mil anos, no clima frio de alta latitude, é de admitir que o alelo associado a um corpo pequeno, ancestral, foi sendo substituído ao longo do tempo. Os investigadores colocaram a hipótese de canídeos mais pequenos, habitando em zonas mais quentes, terem mantido a forma do gene ancestral.
Em declarações à revista Nature, a geneticista Elinor Karlsson, da Faculdade de Medicina Chan da Universidade de Massachusetts, fez saber que “o estudo pode ser um sinal de que os cães foram domesticados a partir de lobos com um corpo maior, distintos dos lobos cinzentos”. A investigadora referiu também que o gene IGF-1 só explica 15% da variação entre raças, ou seja, “é uma de muitas mutações que tende a explicar o tamanho um pouco menor”.
Em teoria, a domesticação de lobos, ao longo de mais de 15 mil anos, pode ter tido um papel nas diferenças de tamanho dos canídeos, mas não será suficiente para justificar tamanha diversidade de portes a que se assistiu nos últimos dois séculos, que vão dos dogues alemães (grande dinamarquês) aos chihuahuas.
As rotas da seleção
Os animais que nos habituámos a ver como os melhores amigos do Homem – e aptos a desempenhar tão diversas, da tração à guarda, da caça à companhia – tinham, na forma selvagem inicial, um gene mais antigo do que se pensava, e a domesticação parece desempenhar um papel nessa história.
António Amorim, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, lidera o grupo de investigação em genética populacional e evolução no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde. Durante vários anos, estudou a genética populacional das raças autóctones e de lobos, em Portugal.
Inquirido sobre o impacto deste estudo, o especialista observa que “a demonstração do envolvimento de um gene na determinação genética do tamanho de canídeos é relevante”, embora considere trivial que “a variação nesse gene, responsável pela diversidade de tamanho, seja muito antiga, ou seja, anterior à domesticação”. E remata: “É bem sabido que a domesticação seleciona variantes genéticas preexistentes, bem como as que aparecem durante o próprio processo de domesticação.”