Um ponto final, que acontece à nossa revelia, indiferente aos nossos planos e tentativas de controlo. Percebemos que não somos imunes à perda – e à dor da perda – quando se interrompe a ligação, com algo ou alguém, que era tida como segura, contínua, garantida. As mortes fazem parte da vida e a forma como lidamos com elas, as físicas e as outras, é que assume expressões diversas, em função das histórias de vida de cada um.
Num ano que ficará na nossa memória como um tempo de ceifas em todas as frentes, uma terapeuta familiar e de casal americana, colaboradora da revista Psychology Today, está a dar que falar, pela publicação de um artigo em março, que se tornou viral, sobre as razões pelas quais não fazemos o luto de perdas significativas. Aos 31 anos, Sarah Epstein inspirou-se nos estudos da investigadora Pauline Boss, da Universidade de Minnesota, e no seu conceito de “perda ambígua”, comum a quem lida com familiares que sofrem de lesões cerebrais, doença mental (como ilustra o filme “O Pai”, que conquistou dois Oscars, sobre um homem com demência), mas também a quem se vê confrontado com a quebra ou a erosão de laços afetivos decorrentes de situações de divórcio ou de migrações, por exemplo. Em situações como estas, a forma como se processa o luto pode ser diferente de outras, assumindo formas menos convencionais e, ainda, pouco compreendidas.
Chocante? Não, é natural
O que a terapeuta familiar de Filadélfia traz de novo é a ideia de poder existir um luto não normativo, que leva o próprio a duvidar de si ou a ser alvo de julgamentos injustificados. E apresenta três registos em que ele pode não ser tão óbvio: o luto abreviado, aquele que tem baixo impacto emocional e o antecipado.
No primeiro caso, um acontecimento que traz emoções positivas ocupa o lugar do que foi perdido. A mulher que descobre que vai ser mãe a seguir a uma interrupção involuntária da gravidez, o homem que casa pouco depois de ficar viúvo ou o jovem que recebe um animal no seu aniversário quando perdeu o amigo de quatro patas que o acompanhou na infância e na adolescência. A alegria ou a felicidade associadas ao novo capítulo da vida não substituem a ausência e a dor ligadas ao fim do anterior. O luto tende a ser rápido, mas não é menos legítimo ou genuíno e pode até ser dificultado pela pressão do “ter de estar bem”.
Três registos em que o luto pode não ser tão óbvio: quando é abreviado devido a outros acontecimentos, se tem um impacto emocional reduzido ou nos casos em que é antecipado
No segundo caso, nunca chegou a existir um vínculo com a pessoa ou a situação que se tinha, sendo por isso expectável que o luto tenha pouco impacto emocional. O filho que não tinha proximidade afetiva com o pai ou a mãe biológica pode sentir indiferença ao receber a notícia da morte deles. Do mesmo modo, a pessoa que não era bem tratada pelo chefe ou se dava mal com o cônjuge sentirá, provavelmente, uma boa dose de alívio quando essas situações terminam, sem ter de disfarçá-lo a fim de corresponder às convenções sociais, ou “para não parecer mal”.
Nos casos da chamada morte anunciada, em que se sabe que há um fim e que é só uma questão de tempo até que aconteça, a tendência é que o luto se faça por antecipação, levando a pessoa a crer que não chegou a fazê-lo. O sofrimento é geralmente sentido durante o processo, enquanto se cuida de um doente terminal ou se vai gerindo a dor na batalha judicial em que se transformou uma parceria que deu para o torto e só se deseja que acabe. Assim que se chega ao fim de uma jornada longa e penosa, parte do trabalho de luto já aconteceu, razão pela qual se pode ter a impressão de ter entrado numa etapa nova, em que “o pior já passou”.
A cada um o seu
Em todos estes cenários, a probabilidade de ser-se mal interpretado pelos demais ou de questionar-se por não estar a sentir o luto “como devia” é grande. O receio da sanção social – o estigma da “viúva alegre”, comentários como “estás em negação” e observações do tipo “é mesmo insensível, nem parece que foi com ele(a)” – pode comprometer, em maior ou menor grau, a capacidade de superar uma fase normal da vida e de seguir em frente, por ter de lidar com sentimentos de embaraço, vergonha e de estar socialmente “em falta”.
O receio da sanção social pode comprometer a capacidade de superar uma fase normal da vida e seguir em frente
Sendo um facto da vida que a todos toca mas cada um vive de forma pessoal e intransmissível, nada como guiar-se pela sua própria bússola emocional e proteger-se de interações que levem o visado a sentir-se mais mal do que bem, mesmo que não entenda o porquê.
“Temos a capacidade para enfrentar dificuldades e superar perdas profundas de forma sadia”, assegura José Eduardo Rebelo, fundador da APELO e presidente do Espaço do Luto. O biólogo marinho e professor universitário na universidade de Aveiro dedicou-se a estudar o tema após ter perdido a mulher e as filhas num acidente de viação, há 25 anos. No seu mais recente livro, aborda os mecanismos envolvidos no processo. “No pesar, o corpo reage por ameaça à sobrevivência ou legado, que é quando se perdem os pais ou os filhos, deixando um vazio emocional”, explica. “O esvaziar desse pesar, da perda afetiva, constitui o luto”. Aqui entram os rituais sociais, ou o período de “nojo”, que foram fortemente condicionados pela pandemia, e se reorganiza a existência. “As perdas expectáveis, do cônjuge ou dos pais, superam-se através da aceitação; as de filhos, o legado, são inaceitáveis e resolvem-se quando os enlutados se conformam.” É algo que “fica para o resto da vida”.
Grandes ou pequenas, são perdas
Embora as causas do luto sejam vulgarmente associadas à “separação da pessoa amada, (por divórcio, emigração, prisão ou outras), à perda das fantasias de afeto parental (o que se projeta nos filhos, da autonomia e sucesso ao cuidarem dos pais na velhice) e danos ao amor próprio (amputações, situações de paraplegia)”, elas podem ter a ver com outras perdas e originar comportamentos semelhantes, ainda que menos intensos e duradouros.
- Quais são as fases do luto? A psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross estudou as reações psicológicas de doentes terminais e identificou cinco etapas: raiva, negação, negociação, depressão e aceitação
- Quais as reações mais comuns? Inquietação, falta de energia e de apetite, dificuldades em dormir ou em acordar. Sentimentos ambivalentes e contraditórios face à ausência daquilo (de quem) falta. Estranheza, dormência emocional, estados de confusão, revolta, culpa ou zanga. Indisponibilidade para socializar ou tomar decisões, alteração das rotinas pessoais. Tristeza, choro, vontade de estar só ou, em certos casos, de estar sempre ocupado
- O que é um luto sadio? É um processo emocional que vai da dor à aceitação e é natural e necessário quando há perdas (o luto patológico é muito raro e implica predisposição para doença mental)
- Como lidar com ele? Respeitar os sentimentos e emoções intensas que experimenta pela dor da perda. Falar com alguém disponível para ouvir e partilhar e expressar o que sente. Cuidar de si, mantendo as rotinas na medida do possível (alimentar-se, dormir, caminhar). Permitir-se voltar a viver momentos felizes sem culpa através de atividades satisfatórias. Pedir ajuda se não conseguir lidar com a dor e sentir-se só para além do tempo que considera razoável
- Fontes: Ordem dos Psicólogos. APA.
José Eduardo Rebelo exemplifica: “Perder a posição social ou a imagem pública que se tinha; jovens que não veem as suas competências reconhecidas; pessoas que ficam sem os seus animais de companhia ou privadas de objetos estimados”. Infelizmente, “situações como estas tendem a ser socialmente censuráveis porque se tende a compará-las com perdas maiores, como a de um filho”. Por compreensível que pareça, fazer juízos morais sobre o sentimento de perda é algo a evitar: “Não há especialistas no luto de ninguém, trata-se de um processo individual que cabe a cada um viver, independentemente das causas.” A melhor maneira de atravessá-lo é “dar tempo ao tempo, deixar que sejam as nossas emoções a conduzir-nos os passos e não a razão, que é um processo defensivo face à dor”.
As tentativas de “acelerar” o luto devem ficar à porta, por serem contraproducentes e dizerem mais do desconforto de quem adota essa atitude do que da sua capacidade de apoiar quem o vive
Quanto às estratégias para ajudar outros durante esse delicado período da vida, fica a sugestão: “Não conseguimos colocar-nos na cabeça do outro, resta-nos estar disponíveis para ouvir incondicionalmente, sem julgar reações e comportamentos.” As tentativas de “acelerar” o luto sem permitir a expressão da dor e o tempo próprio para desconstruir laços, “que varia de pessoa para pessoa”, devem ficar à porta, por serem contraproducentes e dizerem mais do desconforto de quem adota essa atitude do que da sua capacidade de apoiar quem o vive. Algo como “não consigo imaginar o que sentes pode revelar-se uma atitude sensata”. Isto, admitindo que se trata de uma ausência definitiva, e nem todas o são. Quando isso acontece, inviabiliza o fechamento, a despedida, como sucede nos casos de pessoas desaparecidas e naqueles em que as pessoas nos vão morrendo em vida.
Conclusão: sejamos gentis com as perdas, as nossas e as dos outros, e presentes para quem experimenta a privação de algo ou de alguém que foi alvo de muito afeto e não volta.
Entrevista a Sarah Epstein
“O luto é uma ponte que nos permite fazer a transição daquilo que foi para aquilo que será”
A terapeuta de casal e familiar de Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, defende que não existem lutos iguais mas todos têm em comum a necessidade de integrar perdas para seguir em frente
Como explica o sucesso do seu artigo, que tocou tanta gente e se tornou viral?
Pelo facto de muitos leitores se reverem na ideia do luto ser uma resposta à perda, mais do que à morte. A pandemia abalou o nosso sentido de segurança, de identidade e de comunidade. Parte do trabalho de cura com os meus clientes implicou o reconhecimento dessas perdas, as simbólicas e as concretas.

Fala do luto antecipado. Como o define?
É uma perda ambígua, indefinida, no plano coletivo ou individual, de que vamos tendo consciência à medida que acontece, antes de haver um desfecho. Podem ser ideais traídos e narrativas que perderam validade, pela forma como se geriram crises políticas, ou de saúde, nos Estados Unidos. Ou o caso de alguém que tem doença incurável, como a doença de Alzheimer: há um luto que se vai fazendo em vida, à medida que a pessoa perde capacidades. O mesmo se aplica a empregos que vamos deixar de ter e a relacionamentos amorosos com morte anunciada antes de decretado o seu fim, tenha havido, ou não, infidelidade pelo meio.
Pode falar-se de luto quando um casal enfrenta um relacionamento extraconjugal?
Sim, porque a ideia que se tinha do casal antes de haver a traição fica por terra e não volta a ser. Nesse sentido, representa uma perda para ambos: um fica com receio de voltar a perder a segurança e o outro teme nunca ser realmente perdoado. Têm de recriar a história conjugal, que passa a ser a de quem passou por uma crise e chegou ao fundo do túnel. Para muitas pessoas, dar um nome a isto – “Ah, então aquilo que estou a sentir é o luto do que tinha e perdi!” – foi muito libertador.
Quando se fazem escolhas, que implicam deixar para trás algo que se tinha, isso também implica fazer o luto, ou nem por isso?
Existem lutos grandes e lutos pequenos e, porque todos refletem perdas, quanto mais os integrarmos no quotidiano melhor. Por exemplo, quem emigra pode ter vantagem nisso mas é importante admitir que, ao mesmo tempo, isso significa uma perda real do sentido de pertença a uma comunidade, de parte da sua identidade e da sua casa. O mesmo se aplica a outros acontecimentos de vida.
Sendo uma jovem médica, o interesse pelo tema deveu-se a circunstâncias pessoais?
Eu fui mãe a 22 de fevereiro de 2020, um pouco depois do início da pandemia. Eu e o meu companheiro tínhamos o sonho de partilhar a experiência de sermos pais, com familiares e amigos presentes no primeiro ano de vida da nossa filha. Para mim, era também o desejo de passar tempo com outras mães, ir a um restaurante e levar a bebé ou que ela fizesse parte dos rituais da nossa comunidade (judaica). Nada disso aconteceu. Estamos gratos por ter trazido ao mundo uma criança saudável, mas tivemos de aceitar tudo aquilo que sonhamos e não vivemos. E dar espaço a todas as emoções que surgem, mesmo quando saímos à rua sem saber como lidar e damos por nós com esse desconforto, que volta.
Que situações se destacaram a este respeito na sua experiência clínica?
A sensação de estranheza. Podemos ritualizar a morte, mas não temos formas de ritualizar as inúmeras perdas sofridas ao longo deste ano: o fim de uma amizade, a fantasia não concretizada do primeiro ano de universidade, a lua de mel que não aconteceu e foi passada em quartos separados devido à pandemia. No desconfinamento, “cai a ficha” ao perceber que não se consegue socializar como antes ou que as celebrações e os convívios não vividos fazem parte, sendo preciso reconhecer que está tudo bem apesar disso.
Processar essas perdas pode ser mais fácil do que pensamos? Ou nem por isso?
Acompanhei casos em que foi particularmente duro aceitar que não podiam mudar os seus próximos e teriam de viver com essa desilusão face a pais e amigos. Desabafos do tipo “eles nunca respeitaram o meu querer e pensei que esta crise fosse uma oportunidade para nós, mas não aconteceu e não posso forçar essa mudança”. Pensarem que seria diferente e constatarem, com pesar, que tudo não passou de uma fantasia e nunca chegou a existir.
O que foi para si mais marcante depois de ter escrito sobre o tema da perda?
Estes meses trouxeram tempo para pensar e expor coisas que não funcionavam na vida das pessoas mas que elas preferiam esconder ou ignorar: um emprego que não se quer, um casamento que não funciona, ligações que não se deseja manter porque serem vazias de sentido e serem, até, prejudiciais. Recebi mails de pessoas que me agradeceram por as ter ajudado a compreender o que sentiam. Fui ainda contactada por uma enfermeira de cuidados paliativos que me pediu permissão para usar o artigo nas sessões formativas sobre luto.
O que ganhamos em reconhecer que algo está irremediavelmente perdido?
A vida acontece para a frente, com novas formas de pensar e de construir histórias. O luto é uma ponte que nos permite fazer a transição daquilo que foi para aquilo que será. Aceitar o que sentimos e como sentimos é a via para chegar a um novo patamar de experiência.