Nos dias que correm, ou melhor, passam, dentro de quatro paredes, podem vir à memória muitas coisas. As vozes de Sérgio Godinho, “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”. De Michael Stipe, dos R.E.M., “É o fim do mundo como o conhecíamos”. Do ecrã da sala, da janela do edifício, do quarto onde se recupera ou da unidade hospitalar, o desconforto agiganta-se, penetra nos sonhos e ocupa espaço crescente nas cabeças acordadas, como um fantasma. O isolamento social e a quarentena, que se vão aguentando com a noção de que a tecnologia e os esforços de médicos e de todos nós nos levarão a melhores dias, vão-se tornando insuportáveis e começam a fazer estragos comparáveis aos de um ‘sismo psicológico’.
Sintomas de estresse pós-traumático, confusão e raiva foram os efeitos psicológicos negativos mais comuns na quarentena, segundo uma revisão de 24 artigos científicos publicada na revista científica The Lancet. Entre os principais stressores, destacam-se o tempo de confinamento que se pode prolongar sem que se saiba até quando, o medo de ser infetado, a frustração, o tédio, a informação e recursos inadequados ou escassos, perdas financeiras e o estigma associado. Durante a clausura, muitas coisas se tornam hiper presentes. A fragilidade e a beleza da vida, por exemplo, com todas as suas imperfeições. Ver gente a partir e pensar que os próximos podemos ser nós amplia a perceção da morte, uma inevitabilidade em que evitamos pensar por estarmos ocupados a viver. Ou a sobreviver.
Perder, curar, recomeçar
O desaceleramento forçado da quarentena traz espaço vazio para pensar. A privação de tudo o que dava uma ilusão de controlo, de hábitos a rotinas, até mesmo as mais irritantes, é um rastilho para a angústia e a tristeza, mas também desperta a revolta: por ter adiado coisas que se desejava ter feito e não fez, e talvez já nem venham a realizar-se – pelo menos nos moldes que eram familiares – e o abraço que se queria ter dado, a conversa face a face que nunca chegou a sê-lo.
Com o tempo, não há volta a dar, é preciso chegar a um consenso consigo mesmo e abrir mão do que não se conseguiu controlar e experimentar a satisfação (desculpa, Jagger!) por coisas e gestos simples, que antes nem eram notadas, apreciadas, eram apenas tomadas por adquiridas. E, mais difícil talvez, aceitar o fim de um tempo, de uma certa forma de estar e de ser. Um processo não muito diferente das fases do luto que, nas palavras do psicanalista António Coimbra de Matos, é a reação à perda do objeto de amor. Neste caso, lidar com o que se perdeu e se amava. Não raras vezes, tendo consciência disso a posteriori.
Dar significado ao agora
Há meio século, uma médica suíça que dedicou a vida a valorizar o papel dos profissionais de saúde e cuidadores em períodos difíceis na vida e na morte, descrevia as cinco etapas pelas quais o ser humano passa ao lidar com a perda, o luto e a tragédia. Na negação à aceitação, passando pela raiva, negociação e depressão. A obra da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, forte defensora da importância da empatia e dos afetos a ter pelos profissionais de saúde e cidadãos em geral nessas alturas, trouxe-lhe fama mundial.
Numa entrevista recente à Harvard Business Review (HBR), o especialista mundial em morte e luto David Kessler, cujo site recebe milhões de visitas, usou a expressão “luto antecipado” para designar o que a nossa mente faz quando catastrofiza: quanto mais ansiosa, mais se foca no pior que pode acontecer no futuro.
Coautor do livro On Grief and Grieving: Finding the Meaning of Grief Through the Five Stages of Loss (2014), edição comemorativa do décimos aniversário da morte de Kübler-Ross, Kessler afirmou à HBR que é possível encontrar equilíbrio, sem ser dominado ou ficar refém destes cenários internos. O segredo está em centrar a atenção no presente, dos objetos da sala à chávena de café ou outros estímulos à volta. Indo um pouco mais longe, refletir sobre o que tem e valorizar isso pode fazer toda a diferença face ao registo de ficar a pensar no que gostaria de ter ou não tem. E respirar. Pistas que os praticantes de meditação conhecem e os cientistas comprovaram atenuar a dor e estados ansiosos.
A prenda de estar presente
Enquanto crescem os números de infetados e entramos na fase da mitigação, aumentam os estados de mal-estar e de desconforto psicológico. De uma forma ou de outra, todos procuram mitigar, também, os estados de medo, angústia e frustração, como sabem e podem: partilha de piadas escatológicas, canções, poemas, histórias e conversas sem filtro em direto, nas redes sociais, ao longo do dia e ao serão. Manter a distância de segurança e cantar à janela com sorrisos os vizinhos, gravar vídeos com eles até, honrando os ‘soldados’ que higienizam as ruas, tratam infetados e zelam por todos nós. Crescem também, os pedidos de ajuda psicológica. Em Portugal, onde a situação não atingiu as proporções do que se passou na China ou em Itália, a atmosfera psicológica parece ser, no momento, de apreensão.
“Ainda estamos na fase do medo e das dúvidas, do risco de ser contaminado, de expressar receios sobre o futuro ”, nota a psicóloga clínica Margarida Godinho, do Espaço Potencial, em Lisboa. “Ainda há pouco tempo havia pessoas em negação, chegavam de viagem e faziam a vida normal quando estavam a ser aconselhadas a recolher-se em casa”, adianta a psicoterapeuta. Desde que as medidas do governo entraram em vigor, parece começar a evidenciar-se outro sentimento: “Começa a aparecer a expressão da zanga, pelas consequências do isolamento, por deixarem de poder fazer o que faziam, sem saber por quanto tempo e com dificuldades em aceitar a nova realidade.” E, ainda, o desabafo: “Há pessoas com a sensação de que talvez não voltem a ter a vida que tinham daqui em diante, na profissão, nos contactos pessoais.”
Em cada morte um começo. Elisabeth Kübler-Ross usava a metáfora da borboleta. Dias após a morte de Albert Uderzo, um dos “pais” de Asterix e do célebre O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça (ASA), que o presente se faça com o poder da medicina e da técnica e, especialmente agora, com o efeito protetor e curativo dos afetos. Na sua ausência, a depressão, o desespero. Uma forma de morte.