De tarde, poucas pessoas entraram na loja da rua do Ouro, em Lisboa, mas o dia na Azevedo Pinho & Jesus já estava feito. Antes do almoço, a casa de compra e venda de ouro e prata usados e de penhores comprou uma barra de ouro a duas brasileiras, perto dos 30 anos, que receberam dois mil euros isentos de qualquer imposto. Como Maria João Barbosa não tinha nenhuma barra de ouro no cofre da casa, fundada há 68 anos, vai mantê-la ali algum tempo. “É ouro de investimento, em que nunca se perde dinheiro”, garante a filha do proprietário, João Barbosa. Já o conjunto de moedas da contrastaria (ouro puro), adquiridas por €4 mil a uma portuguesa de meia-idade, vão para derreter.
Apesar de instalada uma crise socioeconómica mundial e o desemprego estar a crescer no País – 407 302 inscritos nos centros de emprego, segundo o Instituto do Emprego e Formação Profissional, uma subida de 37% em julho face ao mesmo mês de 2019 –, os portugueses não estão a recorrer em massa à venda ou ao empenhamento das suas joias para assim obterem dinheiro rápido e conseguirem fazer face às despesas. Mesmo com a cotação do ouro a atingir máximos históricos (ver caixa).
Cenário bem diferente do da última crise, por cá fortemente sentida entre 2009 e 2013. Nesse período, Maria João Barbosa comprava todos os dias o ouro das avós e dos pais dos clientes que enchiam a loja. “As pessoas pouco ouro novo têm comprado, e o que há à venda também é de inferior qualidade. O de nove quilates que aqui aparece vai todo para derreter”, explica. “O típico ouro português já foi destruído. As peças do século XVIII e XIX estão a desaparecer. Aparecem muitas moedas banhadas a ouro e relógios, mas não Rolex ou Patek Philippe, dos poucos que ainda valem dinheiro.”
Até os dentes se vendem
Em 1952, quando o tio de João Barbosa, hoje com 80 anos, veio do Minho para Lisboa para abrir a casa de penhores, tudo servia para se conseguir um empréstimo rápido: colchas de linho, televisões, câmaras fotográficas, visons, frigorífico e até motas. “As pessoas continuam a não gostar de mostrar que vão ao penhor”, diz Maria João, habituada a ouvir as histórias dos clientes. Pagar tratamentos oncológicos, viagens e multas, ajudar os filhos ou ir jogar bingo são algumas das razões que levam as pessoas a empenhar os seus bens. “Há de tudo, desde professores, médicos, advogados… Mas já desapareceram as peixeiras, as floristas, os pescadores, os bairristas de Alfama e Mouraria, os ciganos e os africanos que moram cá.”
A 7 de agosto, o valor do ouro bateu um novo recorde: €56,12 por grama
Nem tudo o que é comprado pela Azevedo Pinho & Jesus é posto à venda. Maria João Barbosa tem grande dificuldade em desfazer-se de algumas peças de ouro português que hoje valem cerca de €10 mil cada, como uma pequenina mala e uma cigarreira, elegantíssimas, ou uma Cruz de Malta do tamanho da palma da mão, muito usada pelas mordomas de Viana do Castelo, para pôr num cordão grosso, tal como usava a mulher cigana que a vendeu desfeita em lágrimas.
Sem o vaivém de turistas na Baixa lisboeta, Maria João ficou também sem os americanos e ingleses que tanto adoram as joias em segunda mão. “Os espanhóis só mexem, os chineses pensam que é falso e com os russos há uma barreira da língua que dificulta a transação”, descreve. Para a prestamista, o negócio está mais imprevisível do que nunca. “Há menos gente a empenhar, menos gente a vender e mais gente a resgatar as suas peças.”
Também Cidália Pereira sabe de cor a história das peças que vai retirando dos expositores com o mesmo carinho de quem pacientemente as moldou. “Para se trabalhar nas joias, não se pode sofrer de stresse”, brinca a responsável de uma das agências bracarenses da Valores, que “orgulhosamente” gere há seis anos. Das cerca de 30 agências no País (em 2011, chegaram às 230), esta é a que tem o maior mostruário. Entre pratas, relógios e joias de todos os feitios e valores, Cidália enumera os objetos mais insólitos que lhe vão passando pelas mãos: óculos, um estojo-batom e um porta-termómetro em ouro fazem parte da lista dos mais raros, mas dentes, por exemplo, são vendas comuns. Entre os mais alienados pelos portugueses, estão as libras e as joias de 18 a 19 quilates (70% a 80% de ouro), como as lembranças de nascimento na forma de pequenas pulseiras ou anéis.
A História não se paga
“O ouro em Portugal é muito cultural”, reflete Cidália Pereira, enquanto ajeita as tradicionais filigranas de Viana. Indispensável no traje das antigas lavradeiras, o ouro era motivo de ostentação – muitas vezes, o único. “Fosse quem fosse, tinha de ter ouro. Como diz o povo: ‘Ouro quanto possas’”. Apesar de a tradição ter esmorecido, a responsável da agência considera que, mesmo depois da corrida ao metal amarelo no pós-crise de 2008, “ainda há muito ouro” em Portugal. “Embora se venda bastante, não há tanta procura como antes. Durante décadas, as pessoas compravam mais do que vendiam; agora é o contrário”, diz Diogo Faíscas, um dos administradores da Valores. No entanto, mostra-se otimista: “Ainda temos negócio para muitos anos.”
A Valores prevê, até dezembro, chegar às 70 lojas no País e criar mais 70 postos de trabalho – uma rota contrária à forte previsão de uma nova crise económica. O ouro prospera em tempos de crise porque permanece como reserva segura de valor, quando tudo o resto cai. Entre 2008 e 2012, a cotação do ouro já tinha duplicado, e a 3 de outubro de 2012 atingiu o então recorde de €44,44 por grama, só este ano superado: a 9 de janeiro, chegou aos €45,06 por grama. A 4 de agosto, foi ultrapassada a barreira simbólica dos dois mil dólares por onça (€54,73/grama). O máximo histórico, agora, é o de 7 de agosto: €56,12/grama. “O ouro vai ser sempre um refúgio”, afiança Lúcia Pimenta, também administradora da empresa de Braga. “O negócio não vive da desgraça alheia. No primeiro trimestre deste ano, registámos um crescimento de 25% relativamente ao mesmo período do ano anterior”, constata.
Cidália Pereira tem poucos clientes que investem em ouro sem precisarem da liquidez. “Isso acontece quando o rei faz anos. Fico toda contente quando alguém vem cá e diz que não precisa de dinheiro para comer.” A agência costuma receber 15 a 20 clientes por dia, mas “o mês de agosto, por causa das férias e da chuva, não tem sido o melhor”.
Mais tempo sobra para nos falar das peças. “Esta é daquelas que é um crime fundir”, diz-nos, enquanto segura um conjunto de colar, brincos e anel. Apesar de ser feito de ouro e prata, ornamentado com lascas de diamante, a aparência é simples. Na etiqueta, lê-se: “Mais de 50 anos. 3 220 euros.” Mas, na balança, “o que pesa é só o metal. Não podemos pagar a História.”
Pagam em dinheiro
No início de 2011, ano de entrada da Troika em Portugal, houve 709 novos pedidos de início de atividade como retalhista – a maior parte proveniente de novos franchisings do ouro – que tinham chegado, em 2010, à Casa da Moeda. Um aumento de 150% face aos números de 2008. Este ano, até agosto, houve uma centena de pedidos de novas licenças para retalhistas de compra e venda de ouro e prata usados, apenas uma ligeira subida face às 80 licenças de 2019 e às 86 de 2018.
Um dos pedidos foi da Unicâmbio, empresa portuguesa líder no mercado cambial e de transferências de dinheiro, desde julho a apostar numa nova área de negócio: compra de ouro usado. Criada há 28 anos, esta não é a primeira crise que a Unicâmbio tem de superar e, mais uma vez, investe num novo serviço para agarrar clientes. ”Esta crise surgiu de surpresa, embatemos numa parede. É um impacto tremendo: nos câmbios, a quebra é superior a 80% e nas transferências ronda os 20% a 25%”, contabiliza o administrador, Paulo Jerónimo, que planeia ter, até ao fim do ano, um total de 50 lojas com este serviço. “O ouro nunca teve valores tão elevados. É propício a que este negócio aconteça”, justifica.
Já em 2002, após a transição do escudo para o euro, quando a maioria das moedas europeias desapareceram, Paulo Jerónimo viu também desaparecer metade do negócio. Até então as casas de câmbio não tinham autorização do Banco de Portugal para realizarem transferências de dinheiro, mas assim que houve permissão, a Unicâmbio alargou o negócio a uma nova atividade, para fazer face àquela crise. Só assim ultrapassaram o momento crítico, que duraria até 2004. Na crise seguinte (2009-2013), passaram quase pelos pingos da chuva, muito à conta de trabalharem com o mercado angolano, e nesses anos o setor cambial manteve-se até em contraciclo.
Agora, a tarimba dos funcionários muito contribui para conseguirem margem na hora de negociar a compra de ouro. “Seja euros, dólares ou ouro, queremos valorizar”, assume o administrador. Avaliam qualquer peça de ouro pela pureza e o peso, deixando de lado o valor histórico ou artístico. “Estamos a ser concorrenciais, oferecendo entre 5% e 10% acima da prática normal”, garante. E como têm numerário na loja, devido aos câmbios e às transferências, uma das condições vantajosas anunciadas é pagarem em dinheiro. Nestas primeiras semanas de atividade ainda só compraram peças pequenas, de €100 a €300, entre medalhas, anéis e brincos. A expectativa recai nos meses de inverno e no início de 2021, épocas por excelência de mais vendas de joias, moedas ou barras de ouro.
*com Inês Loureiro Pinto