Quando falamos em obesidade, o mais vulgar é associar o aumento de peso ao estômago. Mas, afinal, o segredo pode estar noutro órgão. É cada vez mais evidente que os intestinos de algumas pessoas são mais eficazes a extrair as calorias dos alimentos. Ou seja, dois amigos podem almoçar exatamente a mesma refeição, mas tal não significa que ambos absorvam igual quantidade de nutrientes. Talvez seja isto mesmo que nos distingue daquele primo que “pode comer de tudo e não engorda”.
Vários estudos científicos têm vindo a revelar uma relação entre o microbioma intestinal deficitário – a chamada disbiose – e o excesso de peso, enquanto as pessoas mais magras têm uma maior variedade de microrganismos nos intestinos. Por isso, a atenção dos especialistas em obesidade está voltada para o microbioma. A palavra deixou de estar confinada aos laboratórios de investigação científica e começa, agora, a entrar no léxico do cidadão comum. O microbioma é o conjunto de triliões de microrganismos (bactérias, fungos e vírus) que convive naturalmente no corpo humano. É capaz de decompor os alimentos para que consigamos extrair os seus nutrientes, de fabricar vitaminas necessárias ao corpo humano, de ensinar o sistema imunitário a reconhecer agentes invasores ou de produzir substâncias anti-inflamatórias que ajudam a manter-nos saudáveis. As alterações na composição do microbioma estão, assim, associadas ao aparecimento de doenças. A flora intestinal de uma pessoa saudável é diferente da de quem tem uma patologia. E pode revelar se alguém tem ou não tendência para ser obeso.
Em 2013, o biólogo americano Jeffrey Gordon, da Universidade de Washington em Saint Louis, EUA, usou amostras das bactérias intestinais de gémeos humanos, em que apenas um deles era obeso, em ratos de laboratório. Os roedores que receberam as bactérias dos irmãos obesos rapidamente começaram a ganhar peso, enquanto os outros não. Será, então, o microbioma transferível? “O que estamos a supor, no limite, é que a obesidade pode ser contagiosa – no contexto animal isso verifica-se”, nota o imunologista Henrique Veiga Fernandes.
A transferência de um microbioma saudável entre humanos provou-se totalmente eficaz no tratamento da Clostridium difficile, uma infeção bacteriana devastadora que ocorre, habitualmente, quando os antibióticos dizimam a flora intestinal. A terapia utilizada pode causar arrepios: transplante de microbiota fecal. O procedimento é feito, por exemplo, utilizando cápsulas com fezes desidratadas ou através de uma colonoscopia, reintroduzindo os microrganismos de um dador saudável no paciente com a infeção.
Henrique Veiga Fernandes sublinha que estão a ser dados passos muito rápidos e que os transplantes fecais serão, em breve, uma imagem do passado: “Estamos a criar em laboratório cocktails de bactérias que têm a vantagem de ser reprodutíveis e de evitar eventuais infeções transmitidas pelo dador – que deixa de ser necessário, porque basta ir a uma prateleira.” Apesar de estas combinações de bactérias ainda não terem sido testadas em humanos, o investigador da Fundação Champalimaud garante que os resultados são promissores ao nível de diversas infeções.
Na última década, vários estudos têm demonstrado que os adultos com excesso de peso têm uma resposta menos eficaz à vacinação e um grau mais elevado de infeções. A obesidade, a resistência à insulina e a esteatose hepática (fígado gordo) estão associadas a uma menor diversidade microbiana. Mas não é claro se são as patologias que surgem primeiro ou se será o microbioma débil a abrir-lhes caminho. Já mais variedade de bactérias nos intestinos é sinónimo de maior capacidade para decompor os alimentos e, simultaneamente, de produzir moléculas que contribuem para a maturação do sistema imunitário. “Está mais do que estabelecido que o sistema imunitário e o microbioma se influenciam mutuamente”, afirma Henrique Veiga Fernandes.
O sistema imunitário tem a capacidade de espoletar reações de defesa de baixa intensidade que mantêm os intestinos numa espécie de estado permanente de alerta – e de inflamação – de forma a garantir a harmonia do microbioma intestinal. Este equilíbrio pode ser desestabilizado por alterações no sistema imunitário, causadas por doença ou pela idade.
Em busca do longo prazo
Uma investigação publicada recentemente na revista Science, liderada por um cientista da Universidade do Utah, nos EUA, procurou perceber até que ponto um problema imunológico pode causar obesidade. Para tal, testou o microbioma de ratos de laboratório saudáveis e com alterações imunológicas. Os intestinos dos roedores com problemas imunitários – com menos bactérias Clostridia e mais Desulfovibrio – absorviam mais gordura e, além de ganharem peso, exibiam sinais de diabetes tipo 2. Também nos humanos a redução de Clostridia e o aumento de Desulfovibrio é habitualmente sinónimo de obesidade e de diabetes tipo 2.
No entanto, excetuando o tratamento da Clostridium difficile, “nenhuma outra terapia baseada em transplantes fecais em humanos conseguiu ter efeito a longo prazo”, sublinha a especialista em obesidade Ana Domingos. No caso da obesidade e das doenças metabólicas, o processo de cura será muito mais complexo, já que também estão em causa fatores genéticos, a dieta alimentar, o meio ambiente e o estilo de vida. “A manipulação do microbioma é uma ideia atrativa, mas tem sido pouco consubstanciada”, acrescenta a também docente do departamento de Fisiologia da Universidade de Oxford, em Inglaterra.
“Não podemos esperar uma solução milagrosa para a obesidade”, alerta Eva Lau. A endocrinologista irá defender, dentro de poucas semanas, a sua tese de doutoramento, precisamente sobre a eventual relação entre o microbioma intestinal e a obesidade. Concluída a investigação, a médica do Hospital de São João, no Porto, defende que esta é “uma hipótese relevante”. A confirmar-se, poderá revolucionar a informação nutricional dos alimentos, já que as calorias absorvidas podem depender dos microrganismos existentes no intestino de cada um e das idiossincrasias de cada sistema imunitário. Eva Lau acredita que a manipulação do microbioma poderá tornar-se mais uma (importante) ferramenta no combate ao excesso de peso. O grande desafio, concorda a endocrinologista, “é conseguir alterar o microbioma de forma permanente”.
Sem representar um reset total do microbioma, um estudo preliminar publicado, em julho, na revista científica Nature Medicine, sugere que acrescentar uma única bactéria aos intestinos pode ser suficiente para alterar o metabolismo. De acordo com a investigação, as pessoas que tomaram um probiótico com a bactéria Akkermansia muciniphila – mais comum em quem não tem excesso de peso – tiveram uma ligeira melhoria no seu funcionamento metabólico, incluindo perda de peso.
A tentação de melhorar o microbioma poderá levar a uma corrida aos alimentos probióticos – uma indústria que deverá representar mais de €6 mil milhões em 2025. Uma maratona inglória, uma vez que não há nenhuma evidência de que os probióticos sejam eficazes a alterar o microbioma. “Na sua maioria são inofensivos, a questão é se serão efetivos”, interroga-se Henrique Veiga Fernandes. O investigador da Fundação Champalimaud aconselha cautela, já que “não é uma simples bactéria que altera a complexidade do microbioma de um indivíduo”. Além disso, a maior parte dos probióticos alimentares é destruída logo no estômago e nem sequer chega aos intestinos. Sendo derivados de produtos naturais, os probióticos não estão sujeitos a um controlo tão apertado por parte das autoridades do medicamento dos EUA e da União Europeia. Sendo assim, alerta Ana Domingos, “é difícil saber se são vendidos sob falsas premissas”.
Por enquanto, a forma mais eficaz de manter a diversidade do microbioma é fazendo uma alimentação saudável, essencial para garantir um sistema imunitário forte. Ana Domingos acrescenta outra recomendação fundamental: “Não tomar antibióticos sem serem realmente necessários.” Afinal, a palavra-chave continua a ser a mesma: prevenção.