Guillermina Freniche, 78 anos, não tinha testamento vital e há seis anos que vivia numa residência sénior, na cidade espanhola de Torremolinos. Além disso, sofria de Alzheimer, a forma mais comum de demência – doença neurodegenerativa em que, gradualmente, o corpo vai perdendo o controlo das funções corporais, o que acaba por levar à morte. No início do verão, os responsáveis da residência onde a mulher estava internada chamaram os filhos para que autorizassem que a mãe começasse a ser alimentada por uma sonda. A recusa foi imediata. “A nossa mãe nunca aceitaria ver-se nesta situação, com uma sonda enfiada pelo nariz para prolongar uma vida vazia”, contaram então Astrid e Ricardo ao El País. “Quem a conheceu sabe disso.”
Os médicos da residência religiosa de Torremolinos onde a senhora estava internada não acataram a opinião dos filhos. A disputa seguiu para tribunal e a ordem judicial foi para avançar com a alimentação artificial. Astrid e Ricardo não se conformaram e decidiram interpelar o comité de ética regional da Sociedade Espanhola de Geriatria. A deliberação foi conhecida no final da semana passada: alimentar pacientes com Alzheimer ou demência avançada por sonda não melhora sua qualidade de vida e pode causar danos.
Segundo o comunicado, não está comprovado cientificamente que aquele tipo de prática em pacientes com demência em estado avançado tenha qualquer benefício para o seu estado nutricional, para o prolongamento ou melhoria da qualidade de vida – causando, ainda por cima, desconforto e outros riscos, como a aspiração pulmonar de alimentos.
“As diretrizes da prática clínica das principais sociedades científicas especializadas em demência consideram que, naquele contexto, o uso da sonda nasogástrica (ou seja, colocada pelo nariz até ao estômago) é um tratamento fútil, não recomendando o seu uso”, assinala o comunicado, recordando ainda que os problemas da deglutição fazem parte do progresso irreversível das demências e da doença de Alzheimer em particular.
“Ela está agitada e a reclamar quando antes estava calma”, notou, na semana passada, o filho, que é também seu guardião legal. “As lágrimas caem-lhe pela cara abaixo e a expressão é de dor”, acrescentava a filha, a insistir que lhe fossem ministrados cuidados paliativos. Os dois chegaram a levar a mãe a um centro para aquele tipo de doentes, mas a residência denunciou-os.
Em regra, os geriatras defendem que os cuidados básicos que garantem medidas de conforto devem ser mantidos até ao final da vida. Quando os problemas de deglutição começam a manifestar-se, as decisões seguintes devem ser tomadas caso a caso – considerando o conhecimento científico do momento, os valores e preferências que a pessoa possa ter expressado durante a vida e ainda a opinião das pessoas mais próximas.
Conhecida por ter sido uma das primeiras empresárias na Costa del Sol, além de ter secretariado o primeiro autarca de Torremolinos da democracia, Guillermina já tinha acompanhado o fim da vida da sua mãe, que também sofrera de Alzheimer e lutou então contra práticas semelhantes às que lhe foram aplicadas. “Ela só chora e grita, agora que compreendeu o que lhe está a acontecer”, teimou ainda a filha, que criou a hastag #FreeGuille, no Twitter, onde tornou a história pública, suplicando por uma morte digna para a mãe.
Segundo o filho, Ricardo, houve ainda vários médicos que, quando atenderam Guillermina no hospital para lhe inserir a sonda, acabaram a confessar aos familiares que, por eles, nunca o fariam num paciente naquele estágio da doença. “Negam-lhe os cuidados paliativos porque o seu cérebro foi destruído por uma doença neurodegenerativa”, denunciam ainda Ricardo e Astrid. “Se há alguma justiça nisto?”
Já a notícia que ninguém desejava chegou na tarde desta terça-feira, 3: a ser alimentada artificialmente desde meados de julho, Guillermina acabou por – como sublinharam os filhos à imprensa espanhola – “morrer como não queria”.
E se fosse cá?
A disputa que apaixonou o país vizinho é reveladora de uma situação bem mais generalizada do que poderíamos imaginar. “É a prova da importância do testamento vital”, considera Rosário Zincke dos Reis, da Associação Portuguesa dos Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer (APFADA), antes de lembrar que, ao contrário do que se esperava, a lei aprovada em 2012 teve muito menos adesão do que se esperava. “Uma das explicações para isso pode ser as pessoas não gostarem de falar em fim de vida e de se prepararem antecipadamente para isso. Mas depois podem acontecer coisas destas…”.
O mais estranho no caso de Espanha, aponta ainda a responsável da APFADA, é que se trata de alguém informado e diferenciado – e que até passara por algo parecido com a sua mãe – mas depois não cuidou de deixar escrito como queria que fossem os seus cuidados em fim de vida. Rosário sabe bem que, ainda por cima, nem sempre há acordo entre os familiares em situações assim, como até acontece com a família da espanhola Guillermina.
“Agora pode dar-se o caso de ser possível provar que era essa a sua vontade, mas o melhor, sempre, é as pessoas prevenirem-se””, segue Rosário, a lembrar que muitas vezes isto resulta também de falta de conhecimentos sobre cuidados paliativos e que a pessoa não morrerá nem de fome nem de sede. “Morrerá de qualquer forma, mas sem o desconforto que a alimentação feita artificialmente provoca. Que direito temos nós de decidir que os últimos dias de alguém sejam de dor em vez de desconforto?”.
Já para Manuel Mendes Silva, do Conselho de Ética da Ordem dos Médicos, é muito importante que se distingam três práticas – a saber: a eutanásia (o ato intencional de antecipar a morte de alguém e que não é aceite pela ética médica); a distanásia (em que se tenta prolongar a vida de alguém de forma artificial mas também desproporcionada) e ainda a ortotanásia (a que prevê permitir ao doente um fim digno, proporcionando a melhor qualidade de vida possível, sem dor nem sofrimento).
“É neste último tipo de ato que se inscrevem os cuidados paliativos e é isso que defendemos”, assinala aquele médico, reconhecendo que há depois situações difíceis e limite. “Continuar a dar soro e oxigénio são práticas consideradas básicas e que não causam dor; já a intubação nasogástrica tem de ser avaliada caso a caso. Há doentes que toleram na perfeição, melhorando a sua qualidade de vida e há outros que não. Aliás, já tivemos um caso desses cá e a acabámos por tirar a sonda porque causava um enorme sofrimento.”