Quando o gastroenterologista Rui Tato Marinho começou a tratar os seus doentes infetados com o vírus da hepatite, há quase trinta anos, a taxa de cura era de seis por cento. “Depois, de cinco em cinco anos, havia um saltinho”, recorda. De avanço em avanço, chegamos a um ponto em que os medicamentos disponíveis têm uma taxa de sucesso de 96 por cento. “Na hepatite C vivemos um ‘momento penicilina’”, compara o médico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que acompanhou com grande proximidade a luta dos doentes pelo acesso a estas terapias inovadoras.
Ao fim de uma disputa que envolveu médicos, Governo, farmacêuticas e associações de doentes – e um episódio marcante, em que um doente gritou, na Assembleia da República, “Sr. Ministro, não me deixe morrer” –, o Estado acabou por assinar um acordo histórico. Assim, desde fevereiro de 2015, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) disponibiliza tratamento a todos os infetados pelo vírus que se transmite sobretudo através do sangue e afeta o fígado.
“As pessoas sofreram muito. Viram os amigos morrer, com cancro do fígado, a serem transplantados. Fizeram dois, três tratamentos, dos antigos, com imensos efeitos secundários. Agora, ao fim de um mês estão curados. Chegam a chorar de emoção na consulta, abraçados a nós”, conta Tato Marinho. No Dia Mundial das Hepatites, o músico Rui Reininho, assumiu que chegou a pensar em suicídio, ao longo dos 26 anos em que viveu com o vírus. “Fui tentando tratamentos sucessivos desde 1990. Eram tratamentos violentíssimos,” relatou o vocalista dos GNR, que chegou a pôr a hipótese de emigrar para se tratar com os novos medicamentos, quando estes ainda não estavam disponíveis no nosso país.
Hoje, “Portugal é uma referência no que diz respeito ao acesso universal ao tratamento”, sublinha João Pedro Marques Gomes, especialista em economia da saúde, em particular na vertente da eficiência. No acordo assinado entre o Estado português e as empresas farmacêuticas inaugurou-se o que é uma nova tendência em saúde: o pagamento com base no valor ou no sucesso. Quer isto dizer que, no caso da hepatite C, só são pagos os tratamentos que resultarem em cura. “Esta estratégia tem vindo a ser seguida, para várias patologias, em países como a Suécia ou o País de Gales”, refere o professor da Universidade Nova de Lisboa. No final de julho, foi feito um balanço do programa: 11 792 tratamentos iniciados, 6 639 já curados, o que evitou 339 transplantes hepáticos, 1 951 carcinomas e 5 417 casos de cirrose.
Onde está o Wally?
Mas o assunto não termina aqui. No ano passado, Portugal assumiu o compromisso de chegar ao ano de 2030 com menos 90% de novos casos e com uma diminuição da mortalidade na ordem dos 65 por cento, tal como determinado pela Organização Mundial de Saúde. No estudo Eliminar a hepatite C em Portugal: da visão à ação, coordenado por Marques Gomes, e revelado em exclusivo pela VISÃO, propõem-se medidas para lá chegar. Para o preparar, a vasta equipa falou com todos os intervenientes no processo, desde médicos a farmacêuticos e organizações não governamentais. Também visitou prisões e acompanhou associações de apoio aos sem-abrigo e aos consumidores de drogas, população em que a taxa de infeção é bastante elevada. “O rastreio é obrigatório à entrada da prisão. Mas depois, quando saem, deixamos de saber como chegar a estes grupos”, nota Marques Gomes. Como nunca se fica imune ao vírus, a reinfeção é um problema que se poderá vir a colocar cada vez mais no futuro. Até porque esta é uma doença altamente contagiosa – muito mais do que o HIV, por exemplo –, facilmente transmissível através de pequeníssimas amostras de sangue.
Aliás, um dos grandes problemas é não se saber ao certo quantos infetados há em Portugal, havendo uma estimativa que aponta para os 70 mil. E se não estão identificados, como podem ser tratados? O problema torna-se mais grave pelo facto de a maior parte do tempo, a infeção ser completamente assintomática. Ou seja, a pessoa transportar o vírus durante anos e contagiar outras, sem o saber. Daí que a hepatite C também seja conhecida como a “doença silenciosa”.
“Só conseguimos ‘encontrar o Wally’ se fizermos um rastreio a toda a população”, defende o investigador da Universidade Nova. “Vale a pena sabermos quantos são. Os doentes não identificados são fontes de contágio”, defende. Daí que um dos pontos chave da proposta seja testar toda a população portuguesa, pelo menos uma vez na vida. “Basta os médicos de família incluírem o teste à hepatite C nas análises de rotina”, clarifica. Identificar e tratar é “dar uma segunda oportunidade de vida”, sublinha Rui Tato Marinho, que já assistiu a vários recomeços.
Outro ponto crítico no sistema, aponta-se no estudo, é o percurso complicado, e centralizado nos hospitais. Até mesmo a população prisional tem de receber o tratamento num hospital do SNS, com tudo o que isso implica – deslocação de dois guardas prisionais, veículo próprio. “Simplificar, aproximar e integrar” são as palavras de ordem. “Não há razão para não serem os profissionais de medicina geral a acompanharem os doentes que não tenham outras complicações de saúde”, sublinha Marques Gomes. “É preciso levar o tratamento ao local onde estão os doentes, como às carrinhas da metadona, por exemplo. Porque não?”.
No prefácio do estudo, o ex-ministro Nuno Morais Sarmento revela: “Vivi mais de vinte e cinco anos com esta doença, atravessei anos de tratamento e arrostei essas décadas com a falta de energia, de vontade e até com a dor que a hepatite C provoca. Mas, neste momento, aquilo em que penso mais é em todos os que não aguentaram esta longa caminhada e partiram com a doença. Não parti com eles, depois de muitos anos de tratamento e outros tantos de insucesso, apenas porque me foi disponibilizada esta nova solução médica. O nosso País teve a visão, é necessário agora cumpri-la, com ação.” Para que outros não partam sem razão.
Uma doença (ainda) muito presente
71 milhões de infetados e 400 mil mortes, a nível mundial, em 2015
0,83% prevalência em Portugal, em 2016 (cerca de 70 mil doentes)
0,64% prevalência na União Europeia, em 2015
0,41% prevalência estimada para Portugal, em 2030
Fonte: Eliminar a hepatite C em Portugal: da visão à ação, coord. João Pedro Marques Gomes, Universidade Nova de Lisboa