“Quer tomar um expresso? Eu preciso.” É esta a pergunta quebra-gelo que o chefe escolhe, depois de uns cumprimentos cordiais. Justificar-se-ia mais tarde, já com a conversa avançada, que passara a noite praticamente em claro. Deitara-se tarde saíra muito cedo de Itália para chegar ao Algarve a tempo de preparar um festival gastronómico que reuniu no Conrad, na Quinta do Lago, 19 estrelas Michelin. Heinz Beck é o chefe alemão do restaurante Gusto, inserido neste hotel de luxo, essencialmente frequentado por estrangeiros. Em Roma, gere o seu La Pergola, que já lhe valeu as três estrelas que se orgulha de ostentar. Além destes a que associa o seu nome, tem mais dois sítios em Tóquio, outros tantos no Dubai e é ainda responsável por todos os restaurantes de um resort junto a uma praia na Toscânia.
Parece impossível, mas, aos 53 anos, Heinz Beck é um homem simples, acessível, que partilha as suas receitas com quem lhas pedir, e ainda tem gosto em confraternizar com os amigos que desafiou para o estrelado festival. Na hora de pôr a mão na massa expressão que aqui ganha cariz literal, porque as massas são a sua especialidade, deixa completamente de sorrir, concentra-se e torna-se um mestre na arte da cozinha. Ouçamo-lo agora, enquanto o expresso lhe dá a energia necessária.
Vou começar por uma pergunta básica: o que se sente quando se tem três estrelas Michelin?
Como se tivesse ido aos Jogos Olímpicos e conseguido uma medalha de ouro. Trata-se do maior reconhecimento que uma pessoa pode receber nesta área. É o guia internacional de referência, os inspetores trabalham de uma forma completamente anónima e são eles que atribuem as estrelas, com base na sua experiência internacional. Todos os chefes sonham em chegar aqui.
Mesmo que não o reconheçam, afirmando que não trabalham para as estrelas?
Quem diz isso, é para se defender, porque cada estrela significa que estamos a sair-nos bem.
É mais difícil recebê-las ou mantê-las?
As duas situações, porque se trava uma batalha todos os dias. É muito importante perceber-se que a distinção nunca se dirige apenas ao chefe eu não trabalho sozinho, mas sim em equipa. Uma cozinha é como um campeonato de futebol: um bom jogador pode fazer a diferença para ganhar o próximo jogo, mas para ganhar o campeonato é preciso ter a equipa certa. E um bom líder.
No seu caso, teve de arranjar sete boas equipas. Como consegue gerir tantos restaurantes em continentes diferentes?
Passo a maior parte do meu tempo em Roma, mas todas as manhãs reúno com as equipas para conselhos técnicos, por FaceTime. Estou em constante streaming com as cozinhas de Tóquio e do Dubai até posso ler os pedidos dos clientes e aperceber-me de quão rápida a equipa é a atendê-los. Também controlo as estatísticas de finanças diariamente, para ver se estamos a ir na direção certa. Qualquer restaurante é um centro de lucro e, se isso não acontece, tenho de saber a razão.
Qual dos sete é o seu preferido?
Perguntaria a uma mãe qual é o seu filho preferido?
Suspeitava que não iria assumir uma escolha… Mas pode dizer qual é o mais Heinz Beck?
Costumo dizer que o meu favorito é onde me encontro no momento, por isso é o Gusto [risos]. Quem está neste negócio não pode ter filhos e enteados.
Tem filhos, além dos sete restaurantes?
[Abana a cabeça de forma negativa e responde misturando inglês com italiano]. Tenho 300 filhos [os funcionários].
Já recebeu muitos prémios, além das estrelas Michelin. Há algum com que simpatize mais?
Lembro-me de todos os prémios que já recebi, mas destaco dois, porque não têm a ver exclusivamente com o meu trabalho como chefe. Em 2000, recebi uma medalha de ouro cultural, que a universidade Sapienza [Roma] atribui há 40 anos para distinguir pessoas com compromissos sociais. Até hoje, fui o único cozinheiro a receber esta distinção. Também me nomearam Cavaleiro da Ordem de Mérito na Alemanha.
Estava à espera que este ano o Gusto ganhasse alguma estrela?
Embora não o esperasse já, ficaria muito contente se tivesse recebido. Vamos seguir com o nosso trabalho, para melhorar.
Conhece algum dos chefes que foi distinguido este ano?
Quando viajo para Portugal, vou essencialmente para trabalhar. Conheço alguns chefes, claro, mas não estes sete em particular que ganharam uma estrela. É fantástico e fico muito contente por eles. Repito: todos os chefes sonham com isto.
O que sabe acerca da nossa gastronomia?
Há vários bons chefes aqui. Os portugueses foram os primeiros responsáveis pela globalização, especialmente de produtos e técnicas alimentares. Mas depois deixaram de ser ricos e pelo caminho perderam-se algumas tradições muito bonitas. Só têm de redescobrir esses conhecimentos e fazer algo de novo com isso.
Utilizam produtos portugueses no Gusto?
Se estamos num país, temos de dar a nossa contribuição, comprando localmente. Não o fazemos em exclusivo, mas vamos buscar ao mercado e ao comércio local o máximo que podemos. Mas, por exemplo, não existe caviar aqui… Odeio supermercados. Reconheço que são convenientes e práticos, mas estão a destruir os pequenos produtores, pois só se interessam pelos preços baixos. Posso prescindir deles porque sou muito organizado. O meu frigorífico está sempre vazio, só lá tenho o que preciso para o dia seguinte.
O que pensa dos nossos vinhos?
Os vossos vinhos são excelentes, mas muito pouco conhecidos no mundo, à exceção do vinho do Porto. Em Itália, isso também acontecia, mas desde há 20 anos a coisa mudou.
Sabe falar português?
Infelizmente, ainda não encontrei ninguém que quisesse ensinar-me…
Porque escolheu Itália para abrir um restaurante e para viver?
Surgiu essa oportunidade em Roma e pensei em mudar-me por dois anos. Conhecia uma nova cultura, aprendia uma nova língua e vivia numa cidade linda… Entretanto, já lá vão 23 anos! É o sítio onde morei mais tempo na minha vida.
Onde viveu antes?
Quando era miúdo, mudei cinco vezes de cidade e de escola. Como chefe, estive três anos em Munique, um ano em Maiorca, dois anos em Achao [Chile], mais uns quantos em Berlim…
Já não pensa em desistir da cozinha para assumir o negócio de joalharia que era do seu pai?
Não. O negócio já nem existe e eu serei chefe toda a vida. Tenho uma mulher fantástica, com quem giro uma empresa consultora de gastronomia e administração de hotéis. Ela administra, faz o trabalho que menos brilha, e eu sou o operativo, na frente, a fazer o trabalho bonito.
Uma vez disse que o mais importante para si era que os clientes se sentissem em casa nos seus restaurantes. Considera os seus pratos comfort food?
O que significa para si comfort food?
Uma comida caseira, que nos desperte sensações e memórias, que nos dê conforto e prazer.
Toda a comida devia ser assim, confortável, criando emoções. Tenho obrigação de providenciar bons sentimentos a quem prova o que faço.
Consideram-no um mestre da cozinha moderna. O que significa isso para si?
Prefiro quando me chamam de pai da cozinha saudável. Há 16 anos comecei a preocupar-me com o efeito que a minha comida tinha no organismo. Aos poucos isso tornou-se uma tendência.
Como estuda esse impacto no organismo?
Trabalho diretamente com um centro de investigação em saúde na Universidade Católica de Roma, com quem faço imensos estudos. Por exemplo, em 2006, estudámos a oscilação da insulina a seguir ao jantar. Havia dois grupos, que tiraram sangue antes, durante, imediatamente a seguir e uma hora depois de comerem os mesmos pratos uns jantaram de forma tradicional, outros ao modo Heinz Beck. Concluímos que é possível estabilizar a insulina, desde que se cozinhe de forma diferente, com a combinação certa de produtos. Na altura, quis publicar este estudo e nenhum jornal se mostrou interessado.
Em que consiste, afinal, esse método Heinz Beck?
Evitar as altas temperaturas, por exemplo, para ser mais fácil a digestão no estômago. Reduzir gorduras e açúcares, cozinhando da maneira mais apropriada. Há que retirar dos vegetais e frutas a sua doçura natural e os seus minerais, e usar isso para reduzir os temperos. Sabia que ingerimos 18 quilos de açúcar por ano (nos EUA chegam a ser 35)?
Usa açúcar nas suas cozinhas?
Já não, só na pastelaria.
Usa algum substituto, como a stevia, por exemplo?
Não. Se formos muito criteriosos a selecionar os ingredientes, não precisamos de adicionar temperos. E se os cozinharmos adequadamente, os micronutrientes dão-nos tudo o que necessitamos para ter um organismo forte. Todos esses micronutrientes são biodisponíveis e por isso facilmente metabolizados.
Que outros ingredientes retirou da cozinha?
Também usamos pouquíssimo sal.
Opta por um tipo específico de sal, como o dos Himalaias, por exemplo?
Esse não é um bom sal. É lindo e faz muita vista, mas prefiro sal marinho, porque é muito rico em potássio e magnésio. Digo isto porque já analisei imensos tipos de sal para averiguar quais eram os mais pobres em cloreto de sódio, que é o que nos faz mal.
O que analisa mais com o centro de investigação universitário?
Antes fazia-o sozinho, num laboratório na minha cozinha. Mas não sou médico nem nutricionista, sou chefe. E por isso estou a trabalhar com vários professores fazem-me entender como a cozinha pode afetar o nosso metabolismo. E eu mostro-lhes como podemos confecionar os alimentos de maneira a preservar os nutrientes. Tenho aprendido imenso com eles, mas é uma situação win-win. Preciso de saber o que há na comida, se quero falar de alimentação saudável. Sempre que começo a trabalhar numa nova técnica, vou analisá-la antes de a aplicar aos meus clientes.
Partilha esses resultados com os clientes?
Talvez devesse fazê-lo, seria mais famoso [risos]. Já escrevi uns livros sobre o assunto e também apresentei alguns relatórios em conferências, mas prefiro concentrar-me em tornar os meus clientes felizes, para irem para casa a sentirem-se bem, acordarem bem-dispostos no dia seguinte, a sentirem-se fortes. O jantar não acaba no momento em que se paga a conta, mas na manhã seguinte, quando nos sentimos bem.
É possível ser-se um grande chefe sem paixão?
Se não se sentir paixão, não se entende esta forma de vida. Tem de se ser muito criativo.
Como é que numa época de crise generalizada, o fine dining se tornou tão importante?
Acho que é o dining de uma forma geral. Estamos a apercebermo-nos, cada vez mais, da importância da nutrição para o nosso organismo, da forma como se pode prevenir certas doenças. Na base disto, estão pessoas que desenvolvem novas técnicas, novas ideias, novas formas de produzir comida saudável de alta qualidade, que agrada ao público. Mas hoje estamos perante duas realidades: há pessoas que têm de lutar para arranjarem o que comer e há outras que podem escolher o que querem comer. As primeiras não se interessam pela qualidade ou pela nutrição perfeita. Num mundo em que se fala tanto de comida, ainda não se conseguiu produzir de forma a não haver desperdício e a não haver quem passe fome. Se não se resolve este tipo de problema básico, não avançamos para lado nenhum.
Em Portugal, temos organizações que vão buscar o desperdício aos restaurantes para dar a quem passa fome, tentando equilibrar isso mesmo.
Mas isso não resulta como solução, é discriminante. Os restaurantes não deveriam ter desperdício, pois não deveriam produzir o que não vendem. E as pessoas mais pobres deveriam aceder à comida, e não a restos. O problema tem de ser resolvido preservando a dignidade de toda a gente.