Naqueles idos de 1999, andava a bióloga e escritora Clara Pinto Correia pelos centros comerciais dos Estados Unidos da América com os filhos quando, já farta de pedidos e arrelias a propósito dos monstrinhos japoneses da moda, declarou: o Pokémon é “uma armadilha do capitalismo”. Mais calma, ela ainda tentou explicar às criancinhas, de forma pedagógica, o significado do desabafo: pessoas muito egoístas só pensam em dinheiro, à custa disso ficam muito ricas e tornam-se capitalistas, resumiu, em linguagem maternal. “Quando for grande também quero ser isso”, respondeu o mais velho, sem hesitações.
Nesta fase, já não é preciso perder tempo a explicar coisa alguma.
Nem adianta.
Se o leitor vive apenas no mundo real, não deve estar a ler isto.
Se foi surpreendido por alucinados rebanhos de crianças e adultos, de telemóvel na mão, e ainda diz “não entendo”, o melhor é começar a procurar outra palavra de fonética semelhante: Nintendo. Aí vai entender. Sim, é o nome da multinacional que abre garrafas de champanhe todos os dias com os lucros conquistados à custa dos vulgares mortais que andam a surrealizar por aí, à cata dos tais “monstros de bolso”.
A origem das espécies
O Pokémon nasceu torto, no final do século passado.
Em dezembro de 1997, mais de 700 crianças e adolescentes japoneses foram parar ao hospital na sequência da exibição televisiva do episódio 38 da série de animação criada por um inadaptado social, viciado em tecnologia e coleções de insetos. Na altura, o Pokémon era transmitido por trinta estações de TV no Japão, mas foi a sua “entrada” nas urgências que lançou o alarme: irritação ocular, tonturas, náuseas, convulsões, ataques de epilepsia e problemas respiratórios foram os sintomas detetados naqueles que haviam visionado uma sequência da série, onde a personagem Pikachu, segundo relatara o Expresso, emitira fortíssimos relâmpagos alternados, vermelhos e azuis.
Enquanto as investigações não atavam nem desatavam, os monstrinhos propagavam-se pelo mundo. O Hollywood Boulevard, em Los Angeles, teve de ser encerrado ao trânsito para a polícia poder controlar as frenéticas famílias que aguardavam em tendas a antestreia do filme. Em cinco dias de exibição, gerou receitas de 51,2 milhões de dólares, um recorde de furar as nuvens à época. A circunspecta Time também não resistiu e fez capa com o Pokémon. “Para muitas crianças é agora um vício: cartas, videojogos, brinquedos, um novo filme. É mau para elas?”, perguntava a revista. Por essa altura, já a maioria das escolas públicas norte-americanas proibira os jogos de cartas com os bonecos da série.
Os especialistas dividiram-se. Os pais baralharam-se. Os estudos confundiram. Os conspiradores divertiram-se.
Psicólogos consideraram o Pokémon relativamente inofensivo, mas outros diziam-se preocupados com os apelos ao “desejo de domínio” das crianças. O problema maior era outro: os miúdos não estão preparados para distinguir o mundo real da ficção. Em Roma, essa verdade nua e crua causou a morte de um menino de 4 anos. Ao tentar imitar uma das personagens dos “pocket monsters”, atirou-se da janela. O caso, além de comover o país, chegou ao parlamento.
O Pokémon foi associado ao cancro, a um gene, a distúrbios mentais, a acidentes. A revista Nature falou dos perigos da exposição à bicharada virtual. Mas a Sociedade Americana de Psicologia viria, já neste século, desassombrar o problema: graças ao Pokémon, as crianças desenvolvem capacidades de conhecimento e de aprendizagem superiores ao que seria suposto, revelou um estudo da instituição.
No tabuleiro político, a “pokemania” gerou mais preocupações do que a recente ida de Durão Barroso para o Goldman Sachs. Em Cuba, por exemplo, a saga do resgate do miúdo Elián ao exílio e aos tribunais dos EUA terminou com uma glória equivalente à vitória na Baía dos Porcos, mas Fidel Castro torceu o nariz quando viu o petiz chegar a Havana: ao pescoço, a criança trazia um Pokémon e a “revolução cubana” ainda nem sequer tinha saído da época dos lencinhos vermelhos, à “pioneiro”.
Por essa altura, já os monstrinhos nipónicos haviam conquistado o planeta. Todo? Não. Três países árabes – Arábia Saudita, Dubai e Qatar – declararam guerra ao Pokémon. De Riade viera o rastilho, serpenteado em larga escala: segundo o chefe religioso saudita, “a maior parte das figuras” tinha a forma da estrela de seis pontas, “símbolo do sionismo e do Estado de Israel”. Ao que consta, a Mossad não foi chamada, nem se gerou qualquer “intifada”. Mas nunca confiando.
Dos 5 aos 13 anos, a miudagem recitava, sem soluços, os complexos nomes de centena e meia de “pokémons”. Os monstrinhos, na verdade, reproduziam a essência do capitalismo: acumular coisas.
Não era um mau negócio, claro. Como tal, chegou a Portugal.
O Pokémon estreou-se na SIC em 1999. O canal passou a transmitir a série nas manhãs de fim de semana, deixando convenientemente de lado o polémico episódio 38 que atirara miudagem para camas de hospital. Bateu recordes de audiência. José Mourinho, já então treinador, era massacrado pelos filhos com as histórias da série. Clara Ferreira Alves, assustada, imaginava um futuro onde os gestos tecnológicos do quotidiano incluíam uma rapidinha de Pokémon no Gameboy. Em 2000, por alturas da estreia do filme em 45 salas de cinema, a VISÃO chamou-lhe “a febre amarela”. Não era para menos: 70 mil pessoas tinham visto a película no espaço de uma semana, compraram-se cinco milhões de cartas do jogo em quatro meses e o cd Pokerap, com a banda sonora em português, alcançara rapidamente os tops. O economista João César das Neves não se conteve: o Pokémon era simplesmente “mentecapto”, escreveu. Mas falou para o boneco. Tempos antes, 50 mil crianças e respetivas famílias haviam atulhado o Pavilhão Atlântico para celebrar a “pokemania” e as aventuras dos seus personagens favoritos onde naturalmente não se encontrava o catedrático César das Neves.
Os monstros tornaram-se uma droga. De facto. “Operação Pokémon” foi o nome dado pela Polícia Judiciária à maior apreensão de ecstasy do início do século, mais de 5500 comprimidos, além de 75 mil doses individuais de haxixe e anfetaminas em pó. O Pokémon era caso de polícia. Caso sério. Mas também caricato. Quando Manuel João Vieira, o icónico líder da banda Ena Pá 2000, ameaçou candidatar-se à Presidência da República, em vez de assinaturas entregou cartas de…”pokémons”. Na altura, o Tribunal Constitucional deve ter respirado de alívio. Mas hoje, as mais humoradas páginas das redes sociais lembram-nos que o Pokémon chegou finalmente a Belém: não está Marcelo Rebelo de Sousa em todo o lado?, pergunta-se.
Nada que nesta casa já não tivéssemos avisado. “Os Pokémons ainda só gastaram as primeiras vidas – e têm mais do que os gatos”, escreveu-se na VISÃO, em abril de 2000. Quem nos desmente, agora?