O Castelo de Leiria recebeu mais uma vez o festival Entremuralhas nos dias 27 a 29 de agosto. Como tem sido regra em edições anteriores a lotação esgotou: 737 pessoa por dia. Uns seguem o festival à risca desde a primeira edição, outros estão a descobri-lo agora. O que os une é um estilo peculiar – “gótico”, podemos dizer, com todos os seus subgéneros – e a oportunidade que o festival lhes dá de se mostrarem como querem. A VISÃO esteve lá, mais atenta ao público do que ao que se passa nos palcos, e falou com alguns dos protagonistas.
Ana sobe a ladeira, que vai dar ao castelo, agarrando o marido, Nuno, pelo braço. Ele, de bengala caminha com dificuldade. Vieram do Porto pela terceira vez para mais um Entremuralhas. Ao início não queriam grandes conversas porque Nuno, 38 anos, já estava cansado de tanto subir e,sabia que ainda tinha outro tanto pela frente até chegar ao castelo. Mas percebeu que até podia descansar um pouco se parasse para falar… Apoiado na bengala com uma mão, mexia muito a outra enquanto falava. Os folhos brancos que vêm das mangas e do peito do casaco abanavam. O cabelo comprido também. É muito expressivo a falar. Depressa contou que está desempregado e a escrever um livro, ligado à religião. E explica que perdeu uma perna com “brincadeiras parvas”: “Caí de um comboio em andamento a caminho de Espinho, tinha 19 anos”. “Eu quando era mais novo era ruim…”, continua, “álcool, drogas, tudo!”, diz. Levava uma “má vida” até conhecer Ana. “Graças a Deus que conheci a minha esposa”, diz, olhando para ela. A mulher que mudou a vida de Nuno nasceu no Rio de Janeiro há 39 anos e trabalhou 14 no Reino Unido como tradutora. Está há quatro anos em Portugal e é professora de inglês. Considera-se uma brasileira atípica por não gostar do calor, nem de praia. Agora, com os olhos bem contornados a negro, Ana fita o homem que mudou por ela.
Asas negras
Já dentro do castelo estão pessoas a jantar em bancos à volta de um porco que assa no espeto. Alguns estão a comprar camisolas, fotografias, discos, pulseiras, brincos…, Outros sobem em direção ao Palco Alma, perto da Torre da Menagem, o ponto mais alto do castelo, de onde se pode ver toda a cidade de Leiria.
Esta antiga casa do rei D. Dinis não precisa de grandes adereços e alterações para servir de cenário ideal para o Entremuralhas – bastam umas lâmpadas penduradas nas árvores do interior das muralhas. O negro dos fatos, vestidos e pinturas faciais do público, o prateado das correntes, anéis e piercings e, este ano, até o branco duma impressionante superlua compõem o ambiente.
Ao passar por uma das muitas arcadas do castelo encontramos, a caminho do concerto dos 6 comm, Liliana Silva, 28 anos e Sofia Agostinho, também 28, “com um dia de diferença”, diz.
Liliana de saia vermelha, corpete de cabedal preto e um acessório vermelho no seu cabelo encarnado, vem pela terceira vez com Sofia, que não perdeu nenhuma edição. São as duas de Leiria. Sofia, vestida de preto, tiara prateada na cabeça, é “artesã, para não dizer desempregada” e faz acessórios para bebés. Liliana trabalha num call center e é vocalista de uma banda de gothic metal. Descobriram o gótico quando andavam na escola. E sentem-se bem de preto.
Francisco Rei, 29 anos, já estava atrasado para o mesmo concerto quando falou connosco. Com um grande boné de aspecto militar, ao estilo dos cabeça de cartaz eslovenos Laibach, veio de Guimarães, como todos os anos. “Venho aqui por duas razões”, grita, para o conseguirmos perceber [a banda começou entretanto a tocar]. “Pelo convívio e pelo cartaz! Nunca falhei uma after party!”, continuou. Veste uma espécie de toga preta comprida, mas não o suficiente para tapar umas botas de pele preta e tacão de dez centímetros. “Gosto de me vestir a rigor porque me sinto bem assim, mas quando estou à procura de emprego não posso…”, diz, descontraído. Estudou cinema no Porto e está desempregado há dois anos.
Nas pausas entre cada concerto vêem-se crianças de mão dada com os pais, muitas vezes também vestidas a rigor, de preto; ouve-se inglês, espanhol, francês e alemão.
Um rapaz com os olhos vermelhos, outro com os olhos brancos chamam a nossa atenção. São eles Frederico Montes, 20 anos e Tiago Coelho, 19. Frederico é o que tem as lentes de contacto vermelhas e traz consigo uma máscara negra a que acrescentou umas luzes azuis. É de Leiria, estuda design gráfico e vem religiosamente todos os anos. Gosta de exagerar em relação ao que veste no festival, é algo com que se preocupa – no quotidiano veste-se de preto, nada de tão excessivo. O pescoço está pintado de preto, com manchas vermelhas, o seu casaco de cabedal tem faixas encarnadas, as calças, também de cabedal, têm outras faixas ao longo das pernas… Tiago, de preto, com pulseiras e colares de picos, anéis compridos de caveiras e uma rede roxa na mão esquerda, vem pela segunda vez. Trabalha num salão de cabeleireiro na Figueira da Foz e diz que não tem problemas em se vestir sempre como quer. Costuma usar sempre lentes de contacto que lhe alteram a cor dos olhos, as que está a usar são brancas e sódeixam ver as pupilas negras. Frederico põe a máscara. Cruza os braços. Tiago coloca-se a seu lado, com o gesto de se pentear. Pose. A fotografia é tirada. Seguem para o próximo palco, acenando.
O concerto começa e a multidão de negro aperta-se. Sentada numas escadas, no meio de tanto negro, está Elsa Silva, 35 anos, que sobressai com as cores que traz vestidas. De capa negra mas com o interior violeta e um corpete vermelho às bolinhas brancas, diz que “as pessoas têm medo do desconhecido”. “Algumas têm mesmo medo de vir a este festival porque pensam que é só roupas negras e caveiras”, lamenta. Elsa é interprete de língua gestual portuguesa, vive em Leiria e é gótica porque se sente bem assim. Vem pela quarta vez e, consigo, trouxe a mãe, de 58 anos.
Com um metro e noventa, cabeça rapada em cima, mas com duas cristas laterias pintadas de amarelo, sorriso a mostrar as presas postiças – colocadas nos caninos – lentes de contacto azuis claras, uma gola rufo negra, anéis – um com uma gema preta e outro com uma aranha – e uma toga negra. Este é Rafael Muñoz, de Málaga, Espanha. “Me encanta” é o que sente este estreante no Entremuralhas. Acompanhado pelos seus amigos espanhóis, Rafael é dos que se destaca mais na multidão pela sua originalidade. Costuma ir a Londres e a Berlim comprar os tecidos a uma costureira para depois fazer a sua própria roupa. Profissão? Funcionário público da parte da manhã, osteopata de tarde e gótico de noite.
Só faltou a uma edição porque foi mãe de Fausto. De resto vem sempre. O filho, esse, veio duas vezes: uma ainda na barriga de Lurdes e outra já com um ano e meio . “Agora ficou com a avó…”. Lurdes Pereira, 36 anos, veio do Porto com o marido Nélio Oliveira, de 37, para mais um Entremuralhas. Lurdes é administrativa na empresa do marido, que vende automatismos industriais, e os dois têm uma companhia de teatro em Tomar, onde estão a trabalhar para uma peça sobre Inês de Castro, no Mosteiro de Santa Clara a Velha, em Coimbra. “Sempre fui muito alternativa, rasgava as minhas calças todas…”, diz Lurdes. Descobriu o imaginário gótico quando tinha 12 ou 13 anos e sentiu que encaixava na sua personalidade. Abriu o seu leque negro, virou-se de costas para fotografarmos as suas asas também negras, e desaparareceu…
Perto da bancada onde se troca dinheiro por senhas para comprar bebidas e comida, cruzamo-nos com Romeu Mendes, 31 anos e Ana Silvana, 20. Vão e vêm de Coimbra todos os dias porque Romeu é cabeleireiro e está a trabalhar. Quando sai do salão onde trabalha as colegas de Romeu ajudam-no na maquilhagem. Nasceu na Alemanha e veio com cinco anos para Portugal, a partir dos 14 ou 15 anos tornou-se gótico… “Isto nasce com as pessoas e vai florescendo”, diz. Usar umas simples calças de ganga não é com ele.
Já perto da saída, sentada à mesa com os amigos, está Janine Mota. Toda ela de preto a contrastar com a sua pele muito branca. Botas de cabedal até ao joelho; uma armação preta em forma de saia comprida; corpete; ombreiras que acabam num tecido quase transparente; um colar também ele de um negro brilhante que envolve todo o pescoço e o peito; piercings; olhos maquilhados; o cabelo escuro todo apanhado. É a sexta vez de Janine no Entremuralhas e vem sempre aprumada. Tem 38 anos, vive em Leiria e é tatuadora. Veste-se sempre como quer porque “felizmente” o seu trabalho dá-lhe essa “liberdade”. A primeira pele que tatuou foi a da sua mãe: desenhou dois anjos, ela e o seu irmão.