A escala na Baixa da Banheira, entre Coimbra e Palmela, é um momento forte, na jornada de João Ferreira 42 anos, candidato apoiado pelo PCP. Aqui, ele joga em casa. Mas a sua entrada no pavilhão da União Desportiva e Recreativa local, onde irrompe em passo acelerado e recebe os aplausos com um acenar vigoroso, prima pela discrição. Sem bandeirinhas nem aparato, o candidato entra quase incógnito no recinto da instituição banheirense, fundada em 1986, nesta localidade do concelho da Moita, na fronteira com o do Barreiro. João Ferreira está a jogar em casa, já o dissemos, numa autarquia comunista, mas numa região onde os bastiões não são eternos e onde os votos se têm escoado das mãos do PCP como se fossem areia seca. Os discursos de boas vindas de três anfitriões seguem o mote da sessão: “Um horizonte de esperança para o desenvolvimento na Península de Setúbal”. O dormitório em volta, neste bairro com nomes de escritores – Rua Alves Redol, Rua Florbela Espanca, Rua Alexandre Herculano, Rua Poeta Bocage -, onde não faltam alguns armazéns abandonados, testemunham a patine enferrujada de um outro tempo, em que os operários enchiam as camionetas a caminho das indústrias dos concelhos vizinhos, entretanto desmanteladas, abandonadas ou recicladas pela concorrência da zona euro. João Ferreira, no seu discurso, fala do brilho desse tempo passado, neste primeiro dia de campanha em confinamento. Lugubremente, perante o espaçamento de cadeiras e as poucas pessoas que puderam estar presentes, o seu mandatário concelhio, João Figueiredo, queixa-se de que alguns “querem confinar a democracia”.
Duas máscaras com a foice e o martelo – e é tudo. Os punhos cerrados, as palavras de ordem e os fatos-macaco desapareceram da antiga cintura industrial
João Figueiredo é um dos anfitriões, o apresentador de serviço e, pelo pequeno palanque, perante as 50 pessoas que as regras sanitárias permitem no recinto (seriam centenas, dirá outro orador, se outros fossem os tempos…) desfilam mais três figuras: o presidente da Câmara da Moita, eleito pela CDU, Rui Garcia, o mandatário do Barreiro, Pedro Canário e o presidente da junta local, Nuno Cavaco. Eles ainda representam as velhas glórias dos dirigentes comunistas da Margem Sul. As ansiedades, as frustrações, as reivindicações, os malogrados projetos de desenvolvimento e o declínio industrial da região, no contexto nacional, não incluem quaisquer responsablidades ou mea culpa das autarquias CDU: é o Governo, a Europa, o grande capital… Mas os anseios são iguais aos dos autarcas de qualquer outro concelho ou de qualquer outro partido: falam de desenvolvimento, de transportes, de vias de comunicação, do apoio às atividades económicas e da importância do turismo… A ideologia ausentou-se dos discursos dos comunistas. Andamos todos ao mesmo.
Pedro Canario, mandatário concelhio do Barreiro, dá voz às queixas sobre a localização da Ponte Vasco da Gama e é o primeiro a falar da 3.ª travessia do Tejo, na zona central, Barreiro-Chelas, rodo-ferroviária. Andamos há muito tempo nisto e o disco está cada vez mais riscado: já ouvimos esta história centenas, milhares de vezes, em todas as campanhas eleitorais de todas as eleições, autárquicas, europeias, legislativas… presidenciais. O projeto atravessa as promessas de sucessivos governos há, pelo menos, um quarto de século, e falar dele tornou-se um ritual. Num lapso inexplicável, este comunista chama Ponte Vasco da Gama à própria e “Ponte Sobre o Tejo” à ponte 25 de Abril. A audiência não aquece.
A 3.ª travessia, bem como a localização do aeroporto – que, para os autarcas comunistas, deve situar-se no Campo de Tiro de Alcochete e não no Montijo (onde o que se perspetiva, é um “apeadeiro”) -, é prato forte da intervenção de João Ferreira. O momento mais quente é aquele onde acusa a empresa aeroportuária francesa Vinci e recusa que seja “uma multinacional a definir os projetos de desenvolvimento para o país”. E classifica a localização do Montijo como um enorme “erro ambiental, económico, social e politico”.
O aeroporto do Montijo e um erro ambiental, económico, social e político
Os 50 apoiantes presentes, mulheres e homens, seguem sonolentamente os discursos, incluindo o de João Ferreira, que está numa corrida contra a deterioração da força comunista, mesmo nos seus bastiões, como reconheceu o próprio PCP, no seu XXI congresso, realizado em novembro. Um orador, antes dele, afirmou que “nós estamos do lado certo da História”, nas a História teima em fugir ao determinismo preconizado pelos autores clássicos do movimento comunista interncional. Tudo o que esta gente quer é recuperar a importância perdida no todo nacional – a indústria, a siderugia, a fábrica, o viveiro do proletariado que se vai deixando aburguesar pelas autoeuropas desta vida, ou se deixa marginalizar, encantando-se por novos “amanhãs que cantam”, apregoados pelo candidato do Chega.
E já que se fala nisso, oiçamos João Ferreira, referindo-se aos remoques, aos insultos e “à má educação” que assolou a campanha, nos últimos dias (depois de Ventura ter chamado “avô bêbado” a Jerónimo de Sousa e de ter ridicularizado o baton vermelho de Marisa Matias, usado pela candidata, no debate televisivo: “Não nos deixemos enganar: esses insultos não são dirigidos nem a mim nem a qualquer outro candidato a estas eleições… O destinatário dos insultos está aqui” – e exibe um exemplar em miniatura da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nesta altura, João Ferreira já se tornou uma espécie de envangelista, empunhando o “livro sagrado”. Na CRP parece estar o remédio para todos os males: o atraso, a recuperação da produção nacional, a distribuição de riqueza, o desenvolvimento nacional, as dores nas costas e as unhas encavadas. Será isto que o eleitorado quer ouvir? O punho erguido, a palavra de ordem, o cravo vermelho, a foice e o martelo, a luta popular, as conquistas da classe operária, essas conquistas passadas e futuras estarão mesmo naquele bloquinho agitado pelo iluminado candidato, que fala da Constituição como da revelação obtida na Estrada de Damasco?…
João Ferreira parece convencido de que sim. Dois dos apoiantes exibem as bonitas máscaras do PCP, vermelhas, com a foice e o martelo amarelos do design por baixo na narina esquerda. Os restantes são apoiantes que aplaudem como se aplaude um artista que acabou de cantar o fado. O frio parece ter-lhes encarquilhado os punhos cerrados que exibiam antigamente. Os murmúrios de aprovação, entrecortados por tímidos brados de “João, avança, com toda a confiança”, tomaram o lugar das antigas arrebatadoras palavras de ordem. Os kispos substituiram os fatos-macaco dos operários da Cintura Industrial. O turismo é, agora, a esperança, onde antes se situava a metalomecânica. A noite já desceu sobre a Baixa da Banheira e sobre o néon demodé que anuncia o edifício da União Desportiva e Cultural Banheirense. O candidato saíu como entrou, sem cumprimentos e sem se deter em conversas com os apoiantes. O pregador da Constituição tem pressa para continuar a sua missão evangelizadora. A sua comitiva cabe toda na única carrinha preta da caravana, o Peugeot 508 novinho em folha que o leva por esse País confinado. Os apoiantes que aqui se deslocaram, numa exceção permitida pelo estado de emergência – a atividade política continua autorizada – regressam a casa. O trânsito da Margem Sul, embora sem os engarrafamentos do final de sexta-feira, parece normal. No meu próprio regresso ao confinamento do teletrabaho, atravesso vários concelhos por entre filas que andam bem, pelas estradas nacionais e na A33, como se nada fosse. Não se vê uma patrulha policial. O vírus não mora aqui