Catarina Martins levou Gaza para “cima da mesa” em Estrasburgo, mas o hemiciclo do novo Parlamento Europeu chumbou a proposta para a realização de um debate sobre o tema. A antiga líder do Bloco de Esquerda, que integra o grupo de 46 eurodeputados da Esquerda Europeia – onde também está João Oliveira (do PCP) –, depara-se com um quadro político de crescimento da extrema-direita. Catarina Martins rejeita a teoria do “efeito ferradura”, defende que o projeto europeu “nasceu das cinzas do fascismo e do nazismo” e acredita que a solução para travar o adversário passa por “alianças à esquerda” no Parlamento Europeu, e em conjunto com os movimentos populares.
O arranque da sessão plenária do novo Parlamento Europeu incluiu um debate sobre a Ucrânia. A Catarina Martins propôs que se incluísse na discussão a situação de Gaza, mas o hemiciclo recusou. Considera que Parlamento Europeu aplica “dois pesos e duas medidas” em relação a estes conflito?
Isso é óbivo. É muito importante o apoio à Ucrânia, é muito importante ser claro sobre o cumprimento do direito transnacional, sobre o direito da Ucrânia à sua autodeterminação e ao seu território, sobre a necessidade da retirada da Rússia… Isso, não há dúvidas, é importantíssimo. Mas a União Europeia perde credibilidade quando mantém um acordo de associação com Israel e, portanto, está a financiar e a armar Israel para o genocídio que está a acontecer em Gaza. E, é claro, há o problema imediato de aquela população merecer o nosso apoio, tem de ter o nosso apoio. É uma exigência quando morrem, naquele conflito, sobretudo, mulheres e crianças. Estamos a assistir a um genocidio e é preciso pará-lo, e essa é a primeira exigência. Depois, há uma segunda leitura, que tem de ser feita, que é o facto de a União Europeia perder toda a sua credibilidade perante a comunidade internacional com estes “dois pesos e duas medidas”. A Europa, desta forma, deixa de ser um parceiro credível quando fala de direito internacional e de direitos humanos. São esses os valores europeus.
O chumbo da sua proposta mereceu, por parte da bancada da Esquerda Europeia [The Left] – em que está integrado o Bloco de Esquerda –, afirmações de que, neste Parlamento Europeu, há quem olhe para estes dois povos [ucranianos e palestinianos] “de forma diferente”. É também esta a sua opinião?
Há uma coisa que temos a certeza: aquele arco que vai dos liberais à extrema-direita, e que chumbou falar-se hoje [terça-feira, 16] sobre Gaza, mas falou sobre a Ucrânia, não está, na verdade, empenhado na defesa dos direitos humanos ou do direito internacional. O seu apoio à Ucrânia é um apoio de interesses e não uma defesa convicta pela paz. E isso é insuportável, e o mundo está a ver que a União Europeia tem esta duplicidade… Acho que isso fragiliza, até, a própria capacidade da União Europeia de conseguir a paz no espaço europeu.
Refere dos liberais à extrema-direita… Acha que o “cordão sanitário” que, historicamente, o Parlamento Europeu sempre impôs à extrema-direita está, hoje, mais frágil?
Estão a fazer-se duas coisas muito perigosas: uma é a normalização da extrema-direita; outra, é criar-se a teoria da existência de dois extremos, ou “efeito ferradura”, o que é totalmente falso. Sobre isso, aliás, acho que é preciso ser muito claro: o projeto de uma Europa de paz e prosperidade, o projeto europeu a que os portugueses tanto aderem, foi construído em cima das cinzas do nazismo e do fascismo. E aqui, no Parlamento Europeu, há grupos que são herdeiros, envergonhados ou orgulhosos dos fascistas e dos nazis, enquanto há quem seja orgulhosamente neto dos antifascistas que derrotaram esses regimes. E isto tem de ser completamente claro, porque não haverá nunca uma saída para paz, democracia e prosperidade na Europa sem se compreender que é absolutamente necessário traçar esta linha entre fascistas e antifascistas.

Falou do “efeito ferradura”. Ao centro, há também que aponte os mesmo perigos anti-europa e anti-democráticos à família europeia de que faz parte o BE?
Esse tipo de discursos são uma mentira histórica e presente com graves que terá, seguramente, consequências para o nosso futuro. Foi na luta popular de ambições de paz, de prosperidade, de direitos do trabalho, de estado social, que se construiu a paz e a prosperidade na Europa. E é preciso ser-se muito claro: construiu-se com a derrota dos fascistas e é essa derrota que é preciso continuar a impor.
Estreia-se como eurodeputada. Como têm sido as primeiras horas no Parlamento Europeu?
A minha experiência, nas últimas semanas, foi, principalmente, construir relações no grupo da Esquerda Europeia a pensar nesta primeira sessão plenária. Devo dizer que estou bastante satisfeita pelo grupo ter, hoje, um documento político muito claro em relação à condenação de todas as invasões, sobre a importância das respostas a dar face às alterações climáticas, sobre os direitos coletivos e individuais, sobre as nossas liberdades… Foi um caminho muito interessante para o grupo da Esquerda Europeia. Confesso, claro, que gostei muito de que o grupo tivesse acolhido a minha proposta de querer um debate sobre Gaza e de poder ter esse espaço logo no início. A seguir vamos começar o trabalho das comissões e, aí, tentarei estar à altura de quem, antes de mim, representou o Bloco de Esquerda. Sei que tenho uma enorme responsabilidade, quando penso no que fez Miguel Portas, Marisa Matias, mas também o José Gusmão ou a Anabela Rodrigues…
A distribuição pelas comissões foi fácil de ser feita?
Sim, como somos um grupo pequeno, fazemos equivaler os membros efetivos aos suplentes, e temos de estar em várias comissões. Eu estarei a titular na comissão de Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar [ENVI] e suplente no Emprego e Assunstos Sociais [EMPL] e Indústria, Pesquisa e Energia [ITRE].
As eleições de junho “guinaram” o Parlamento Europeu à direita. Hoje, há três gupos de extrema-direita no hemiciclo. O que espera dos próximos cinco anos?
Acho que é preciso perceber, em primeiro lugar, que a extrema-direita cresce nas fraturas sociais que o consenso liberal criou na Europa. Ou seja, a desproteção dos direitos do trabalho, a desproteção dos serviços públicos e, até, a complacência que o centro foi tendo, cada vez mais, com a extrema-direita, em assuntos como a política de migrações, etc… Há, na realidade, um centro que já não é centro há muito tempo, que está muito à direita, e isso tem apenas permitido o crescimento da extrema-direita. Pelo contrário, nos países em que existem projetos capazes de inverter esta tendência, tem havido a capacidade de se fazerem alianças à esquerda, criando-se projetos claramente progressistas, ecológicos, com ideais de igualdade e de bem-estar. Julgo, sobretudo, que temos de ter capacidade para fazer essas alianças, dentro, mas também fora do Parlamento Europeu, porque o movimento popular é importantíssimo, e foi sempre ele que construiu as soluções na Europa e recusar o que a extrema-direita nos quer impor.