Não é um segredo de Estado que o Presidente da República é um católico convicto. Marcelo Rebelo de Sousa nunca o escondeu. Até faz por o evidenciar nas prioridades dos seus mandatos, sempre dedicadas aos mais desprotegidos, como os sem-abrigos. Mas Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente num estado laico e isso mesmo lhe recorda a opinião pública sempre que o tema pode entrar em conflito com o seu catolicismo, como no debate sobre a eutanásia ou nas alterações à lei da gestação de substituição.
Porém, no caso das denúncias de abusos sexuais ligados à Igreja Católica, o discurso de Marcelo está repleto de avanços e recuos, que têm colocado o Chefe de Estado no centro das atenções nos últimos dias.
Nesta terça-feira, Marcelo Rebelo de Sousa sentiu-se na obrigação de justificar as suas próprias palavras em que desvalorizava as 424 queixas recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) – um número que disse não ser “particularmente elevado”. Três horas volvidas, argumentava, numa nota da Presidência da República, que tinha sido mal interpretado; que nunca quis desvalorizar os casos e elogiava o trabalho da equipa liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Stretch, admitindo que a quantidade de denúncias poderá não traduzir a real dimensão do fenómeno em Portugal, desde 1950 – data a partir da qual a comissão começou a receber relatos.
Não se ficou por aqui e, à noite, o Presidente reagiu ainda para as câmaras da RTP3, onde, ao longo de cerca de cinco minutos, disse não entender a onda de indignação que trespassa pelas redes sociais, já que considerou ter deixado claro “que qualquer destes casos é grave; muito grave”, reafirmou.
Durante 24 horas, Marcelo foi alvo de críticas de todos os partidos e de muitos cidadãos nas redes sociais, mas o efeito mediático das declarações do Presidente parece repetir-se sempre que o assunto são as queixas de abusos sexuais na igreja.
Um rol de declarações polémicas
A polémica começou a 28 de julho, quando em reação a uma notícia do Observador que indicava que o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, teria silenciado denúncias de abusos de menores, Marcelo Rebelo de Sousa transmitiu que não via “nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime”.
Dias mais tarde, a 5 de agosto, o Presidente tentava conter os danos da comunicação anterior, no final de uma reunião com a comissão que havia começado a investigar estes alegados crimes. A partir do Palácio de Belém, falou então num “número apreciável” de denúncias e pedia “transparência” à Igreja Católica para levar a “investigação até ao fim, demore o tempo que demorar, independentemente do número de casos que houver e daí retirarem as ilações”.
Já este mês – na sequência da confirmação do Ministério Público de uma investigação ao bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, por encobrimento de abusos sexuais – a interferência de Marcelo voltou a fazer soar campainhas. Em entrevista à TVI, José Ornelas admite ter sido alertado pelo Presidente da República de que este teria apresentado uma queixa à Procuradoria-Geral da República. Seguem-se uma série de intervenções pouco claras de Marcelo sobre a data deste telefonema e as suas motivações.
É evidente que o Presidente tem de ter a noção que representa todos. E que hoje nós somos mais diversificados do que fomos no passado [… ], mas não deixa de ser o que é
Marcelo Rebelo de sousa, mARÇO de 2017
Um católico confesso
Marcelo nunca negou a sua costela católica. Até chegou a confessar, em entrevista à Rádio Renascença, em março de 2017, que esta “nunca se põe de lado”. Mesmo assim, prometia nortear o seu trabalho presidencial pela razão. E foi desta forma, recorrendo a argumento jurídicos, que vetou por duas vezes o diploma da Eutanásia, ou acabou a promulgar, no ano passado, a alteração à lei da gestação de substituição – duas questões sensíveis para a igreja.
Todavia, como o próprio admitiu, as suas crenças estão sempre lá. Recorde-se que o primeiro ato público do Presidente, quando tomou posse em 2016, foi um encontro ecuménico e que as suas duas primeiras viagens ao estrangeiro (tanto em 2016, como na reeleição, em 2021) foram ao Vaticano para receber a bênção do papa Francisco.