“As pessoas que idealizaram o Chega sentem-se cada vez mais preteridas e temo que se caminhe para a desvirtuação progressiva do projeto inicial”. O desabafo de Fernanda Marques Lopes, advogada e fundadora do partido, à VISÃO, surge na sequência do conselho nacional realizado no Porto, dia 9.
Nele, André Ventura conseguiu aprovar a suspensão de eleições internas para concelhias e distritais pelo prazo máximo de um ano, com o argumento de que as estruturas não estarão aptas a ir a votos. Para isso, será nomeada uma comissão para preparar os processos eleitorais. A militante número 3 do Chega alega terem sido violadas “várias regras e leis”, considera que está em causa a democracia interna e impugnou, junto do conselho de jurisdição, a decisão tomada na reunião, documento entretanto subscrito por outros dirigentes e militantes.

Democracia e transparência em causa
Segundo esta dirigente, no conselho nacional aconteceu tudo o que não poderia ter acontecido. Para além de “vícios de forma”, há, no entender de Fernanda Marques Lopes, “um “profundo desconhecimento da Constituição, da lei, e de todos os diplomas partidários”, a que se junta a “inaptidão do presidente da mesa”, Jorge Valsassina Galveias. Um exemplo: a convocatória para a reunião incluiu uma listagem dos membros daquele órgão com nomes de militantes entretanto falecidos ou que já se desfiliaram do partido.
Além disso, refere a dirigente do Chega, “houve conselheiros impedidos de usar a palavra e de apresentar propostas, enquanto outros, alinhados com o líder, falaram o tempo que entenderam, alguns até por mais de uma vez”. Fernanda Marques Lopes garante que nem sequer há certezas sobre o universo de votantes da proposta de André Ventura nem do seu sentido de voto. De resto, “para além de não constar da ordem de trabalhos, a proposta não foi do conhecimento prévio dos conselheiros, como é de lei”. Para a autora da impugnação, “a democracia e transparência estão em causa no Chega” e a medida aprovada é uma forma de “maquilhar e alterar” a duração dos mandatos das estruturas concelhias e distritais, embora duas delas, Évora e Setúbal, tenham mesmo de ir a votos por não existirem órgãos eleitos. No caso das concelhias, continua a vigorar a nomeação dos dirigentes. “Suspender a democracia interna é também uma forma de impedir o Nuno Afonso [vogal da direção e chefe de gabinete de Ventura no Parlamento] de se candidatar à distrital de Lisboa, algo que ele já tinha assumido como possibilidade depois de ter sido excluído das listas de deputados”, assinala Fernanda Marques Lopes, que diz ter saudades do tempo em que o ex-secretário-geral Tiago Sousa Dias – que se demitiu e entretanto se desfiliou – garantia a consolidação e a harmonia das questões jurídicas. “Agora estamos no vazio”, assegura. “Se queremos ser credíveis, temos de cumprir regras, ser escrutinados publicamente como os outros partidos e deixar as desculpas das dores de crescimento que servem para justificar tudo”, desafia.
Ventura: dominador ou dominado?
Para a dirigente do Chega, existe, contudo, um pano de fundo que explica as recentes decisões: “Há um distanciamento cada vez maior dos militantes. O núcleo dirigente, além de se esquecer regras básicas da democracia, meteu o líder numa bolha e abriu um fosso em relação ao partido”, acusa. Fernanda Marques Lopes diz mesmo que o acesso ao líder está condicionado e blindado pelos mais próximos. “Mas você pode perguntar: não foi o André Ventura quem os escolheu? É verdade, foi. Embora admita que muita gente falará por ele sem estar legitimada, ele é que escolheu estar mal rodeado”, conclui.

A advogada com escritório em Torres Vedras conhece o líder do partido há mais de duas décadas, é um dos nomes da lista de fundadores do Chega entregue no conselho nacional e estranha que já não sobrem muitos militantes da primeira hora. “No jantar de aniversário do partido, em Braga, nem sequer tinham lugar para mim. E o Nuno Afonso estava numa mesa com seguranças, vá-se lá saber porquê. Ainda disse a um dirigente: «Se vocês estão onde estão, é porque outros trabalharam para isso». Virou-me as costas”, desabafa. “Não sei se há um ataque deliberado aos fundadores, mas as pessoas que idealizaram o Chega com o André já perceberam que há animosidade contra elas. À sua volta, o líder só tem pessoas que lhe dizem o que ele quer ouvir ou que acham que ele quer ouvir”.
A ainda dirigente admite que a sua paciência com os alegados desmandos a que assiste ainda vá durar algum tempo, mas avisa: “Estive 16 anos no PSD e saí porque este era o projeto de direita com que sonhei. Ainda acredito que queremos o mesmo: uma pátria orgulhosa, valores de família, conservadorismo nos costumes e liberalismo na economia. Espero que o Chega ainda seja isto e não esteja a preparar-se para se transformar noutra coisa”.
A versão da direção
Em comunicado, o Chega desmentiu, entretanto, que a democracia interna esteja suspensa. Segundo a direção do partido, a proposta apresentada e explicada por André Ventura no último conselho nacional “consiste em adiar até um ano – e não durante um ano – o processo de eleições para que o partido organize internamente todos os sufrágios que terão lugar a nível concelhio”. No entender do líder, “não faz sentido haver eleições nas comissões políticas distritais uma vez que os seus presidentes irão nomear os responsáveis concelhios que poderão ter de ser exonerados na sequência das eleições a nível dos concelhos”.
O partido garante assim que “as eleições não estão suspensas” e “continuarão a ocorrer nos distritos em que se verifiquem demissões por parte dos presidentes das comissões distritais ou em que o lugar esteja vacante”.