O caso Selminho ganhou outros contornos com a decisão da juíza de instrução do processo de levar Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, a julgamento. A decisão foi anunciada esta terça, 18, pela magistrada Maria Antónia Ribeiro, e os intervenientes serão notificados do respetivo despacho de pronúncia, uma vez que haviam sido dispensados de assistir à leitura do mesmo.
Há três semanas, no debate instrutório no Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto, o Ministério Público insistiu na tese de que houve um Rui Moreira na sombra, a tecer uma forma de beneficiar a imobiliária de família nas entrelinhas da gestão autárquica, e outro às claras, que só tentou emendar a mão quando o tema gerou burburinho público. O presidente do município da Invicta, eleito como independente, foi acusado de prevaricação por suspeitas de favorecimento da empresa da família em detrimento do interesse público protagonizado pela edilidade. Há vários anos que um diferendo opunha a Câmara à sociedade imobiliária Selminho, que pretendia construir num terreno na escarpa da Arrábida, defronte para o rio Douro.
As bases do Ministério Público
Em tribunal, o procurador Nuno Serdoura detalhou que o autarca pediu aos serviços jurídicos do município para consultar todos os processos das ações que estavam em contencioso, incluindo o da Selminho, assim que assumiu a chefia do executivo. Ou seja, Rui Moreira teve “tempo e elementos” para se declarar impedido de atuar neste caso por conflito de interesses e fazer-se substituir, mas, segundo o MP, terá optado por encontrar forma de alegadamente beneficiar a sociedade da sua família. Para o magistrado, os próprios metadados informáticos do documento relativo ao acordo entre a Câmara e a Selminho mostram que o entendimento entre as partes foi fechado antes do líder do município se declarar impedido e de Guilhermina Rego, vice-presidente à época, assinar a procuração para tal. “O acordo não tem pai nem mãe! Há um mandante e um mandatário. O advogado [da autarquia] Pedro Neves de Sousa, que é mais uma vez apelidado de incompetente, que nem sequer teve um processo disciplinar por ter apresentado a contestação fora de tempo, agiu sozinho? Quem lhe dava ordens no momento? O presidente da Câmara Rui Moreira, pelas funções que tinha!”, explanou.
Para o MP, Rui Moreira tinha mesmo de passar uma procuração relativa ao caso por questões legais e para que a Câmara pudesse ser representada em tribunal. Mas, advertiu, a procuração é de novembro de 2013 e a audiência foi em janeiro de 2014. Ou seja, “não havia tempo entre novembro e janeiro para passar procuração ao substituto legal, mas, meses mais tarde, a procuração de Guilhermina Rego foi assinada dias antes do acordo, prazo muito mais reduzido”. Assim sendo, justificou, o argumento da urgência – que é uma das teses da defesa de Rui Moreira – “cai por terra”.
Na perspetiva do procurador, houve clara intenção de responsabilizar a vice-presidente com um facto consumado, mas o MP garante que Guilhermina Rego não decidiu nada sobre um acordo que, potencialmente, obrigava a autarquia a pagar uma indemnização superior a um milhão de euros. “Foi o advogado [da Câmara] que fez isto tudo sozinho?”, questionou Nuno Serdoura.
Como quem vai descascando as camadas do inquérito e colocando a nu toda a acusação, o procurador lembrou que, até 2016, houve “várias reuniões” entre a família de Rui Moreira e elementos da Câmara. Mas disso, referiu, “não há qualquer registo em ata, minuta, e-mail”.
Para o MP, o autarca estava obrigado a dar informação escrita aos eleitos sobre ações judiciais em curso, mas tal, alega-se, “nunca foi feito. Só é feito muito depois, quando levantada em reunião de câmara”. Na verdade, para Nuno Serdoura, “tudo isto passou despercebido, sem publicidade, mais de dois anos. Se fossem ao processo administrativo não estava lá nada”.
Quanto ao facto de não ter requerido impedimento por conflito de interesses, Rui Moreira assegurou ter seguido as indicações do jurista e seu chefe de gabinete na altura, Azeredo Lopes. Mas o MP contesta: o ex-ministro da Defesa “não é especialista em Direito Administrativo”. E acrescenta: “O mais elementar bom senso diria que a situação do impedimento tinha que ser logo abordada em novembro” e Moreira só agiu “quando o acordo já está fechado. Não agiu com dolo?”, questiona o magistrado.
Os termos do acordo, segundo a defesa, correspondem à posição que a autarquia já teria sobre o caso, mas o MP garante que esse argumento não se encontra evidenciado em documentos, “não está escrito”. Ou seja, não existem pareceres, estudos, “nada” que permita dizer que a Câmara mudara o seu entendimento quanto à não autorização de construir na zona pretendida pela Selminho. “O acordo só tem uma direção”, assinalou Nuno Serdoura, desmontando a tese da sua falta de eficácia, uma vez que o PDM teria sempre de ser ratificado pela assembleia municipal. “Mas todos sabemos que os PDM são propostos pela Câmara e aprovados na assembleia”. Rui Moreira acreditaria, segundo o MP, que a alteração passaria sem problema. “Só não aconteceu porque despertou burburinho e atenção”, justificou Nuno Serdoura. O objetivo, na versão do MP, “era tirar o caso do foro judicial para o foro privado” e conseguir um de dois objetivos: “Ou o PDM é alterado para satisfazer construção da Selminho ou há lugar a indemnização”.
Resumindo, pois: “A única parte que ganhava com este acordo era a Selminho. A Câmara do Porto não ganhava nada. Rui Moreira atuou em benefício seu, em benefício da família, contra a lei” acusou o procurador. “Mais nenhuma outra pessoa ordenou o conteúdo do acordo, muito menos a vice-presidente”. Dito isto, concluiu o procurador, “Rui Moreira tudo fez para que o processo fosse decidido em seu interesse e em interesse da sua família”. Por isso, “deve ir a julgamento”.
“Consciência tranquila”
No requerimento de abertura de instrução, a defesa de Rui Moreira já havia reconhecido que o autarca foi “incauto” ao rubricar uma procuração com data de 28 de novembro de 2013, um mês após a eleição, para que o advogado nomeado pelo antecessor, Rui Rio, continuasse a representar o município.
Desta feita, o advogado Tiago Rodrigues Bastos aproveitou o debate instrutório para atacar, com palavras violentas, o procurador Nuno Serdoura. Os autos “são filhos de uma imaginação, de um preconceito e de uma intenção, que não é aceitável”, afirmou, referindo-se ao magistrado do Ministério Público, a quem, durante as suas alegações, acusou ainda de “mentir” e de “adulterar factos”. O advogado referiu ainda que “a prova direta” de que Rui Moreira teve intervenção no processo Selminho é “zero”. Recordou, a propósito, que “nenhum dos intervenientes foi nomeado” pelo autarca e outros já vinham do mandato anterior, liderado pelo atual presidente do PSD, Rui Rio.
À saída da sessão, o líder do executivo camarário disse estar “de consciência tranquila” e contestou aquilo que considera “um processo de intenções”. O seu advogado reforçou não existir sustentação para a acusação do MP. “Assenta em premissas falsas e erradas. Houve um ato inócuo sem significado. Mal seria que uma simples procuração conduzisse à prática de um crime, era o fim do mundo”, ironizou. Para já, pelo menos, Rui Moreira não escapa ao banco dos réus.