Prova “segura, lógica e coerente” reunida pelo Ministério Público (MP), “coincidências, lapsos, distrações” alegadas por Rui Moreira que não convencem e uma intenção deliberada de “beneficiar os interesses da empresa Selminho, em detrimento do Município do Porto”. São estes os fundamentos da juíza de instrução para pronunciar o presidente do executivo camarário da Invicta por um crime de prevaricação – que, em última instância pode originar perda do mandato – e levá-lo a julgamento no âmbito do processo que envolve a sociedade imobiliária da família do autarca.
Para a magistrada Maria Antónia Ribeiro, neste caso não estamos perante “meras suposições ou incertezas”. Conforme escreve no despacho, a acusação do MP é uma peça articulada, com desenvolvimento factual lógico, onde estão descritos factos bem individualizados e concretizados”. Ou, dito de outro modo, “a prova testemunhal e documental constante dos autos não deixa persistir quaisquer dúvidas sobre o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido”. Segundo a juíza de instrução, a atuação de Rui Moreira no diferendo que opunha a empresa da família à Câmara no âmbito de um projeto de edificação na escarpa da Arrábida, “além de invadir competências próprias da Assembleia Municipal quanto à alteração da qualificação do solo do terreno”, garantiam à Selminho a construção pretendida e contrária às disposições do PDM. “Não fora isto, dificilmente a Selminho iria conseguir potencial construtivo nesses terrenos”. Mas não só: para a juíza, só graças ao comportamento de Rui Moreira, o benefício da empresa estaria sempre garantido, mesmo que a revisão do PDM não garantisse à Selminho Imobiliária o resultado previsto.
Assim sendo – e, segundo a magistrada, com a cumplicidade do autarca – a empresa da família de Rui Moreira teria sempre assegurado o “apuramento de um eventual direito a indemnização através de um tribunal arbitral, quando não tinha qualquer direito preexistente consolidado, nem antes nem depois de o arguido entrar em funções”.
O que fez Moreira?
Para a juíza, não há dúvidas: Rui Moreira podia e devia ter prevenido o conflito de interesses entre a defesa do município e os objetivos da Selminho. Ele próprio admitiu saber, por via familiar, que o diferendo estava “encalacrado”, mas terá agido de molde a beneficiar uma das partes, segundo o despacho de pronúncia. De resto, escreve a magistrada, “a análise da prova documental permite entrever que as posições formais que o município sempre assumiu nos vários processos municipais e judiciais sobre a matéria, eram no sentido de rejeição da capacidade construtiva e de recusa de qualquer direito indemnizatório à empresa Selminho”.
Como agiu então Rui Moreira?
Além de, após a tomada de posse, em 2013, ter pedido aos serviços camarários os processos judiciais pendentes, algo “estranho”, segundo a juíza, “pergunta-se como é possível desconhecer a existência de um processo em que uma das partes é precisamente uma empresa na qual tem interesses”, refere. Ainda assim, em janeiro de 2014 já saberia do que se tratava, pois a vice-presidente Guilhermina Rego seria nessa altura confrontada com a necessidade de assinar a procuração para substituição legal de Rui Moreira, “sendo-lhe colocado à frente o acordo [entre a Selminho e a Câmara] já formalizado, a que foi alheia”.
Mesmo assim, o autarca “não se declarou impedido”. E dada a prova documental, a tese da “desatenção” alegada por Rui Moreira não convenceu a juíza. Na verdade, o autarca só declarou o impedimento face ao conflito de interesses “8 meses depois” e com deficiências: o documento aparece no processo “sem data e paginação” e já quando os termos do acordo entre a empresa e a autarquia “estariam definitivamente elaborados”.
No seu testemunho no âmbito do processo, Azeredo Lopes, ex-chefe de gabinete, nega que Rui Moreira tenha tido um comportamento “leviano”. Pelo contrário, garantiu, a atuação do presidente neste caso foi de “zelo reforçado”. A pedido do autarca, Azeredo Lopes aconselhou o autarca a assinar a procuração no âmbito do diferendo entre a Selminho e o município, para não fragilizar este em tribunal, mas acabaria por referir não ter suficientes conhecimentos jurídicos na matéria. “Não se nos afigura plausível” assinala a juíza. “Um Presidente da Câmara que sabe da existência de um litígio entre o Município que representa e uma empresa na qual tem interesses, ao ter dúvidas sobre a outorga de uma procuração com poderes especiais e das suas consequências, não se satisfaz com uma informação superficial «entre gabinetes»”, assinala. “A imagem de ligeireza como se explica a forma como foi outorgada a procuração para o arguido assinar, o comportamento «menos atento e avisado» do arguido não convence face ao contexto em que se desenrolaram os acontecimentos, ao historial de litígio entre o Município e a empresa Selminho que o arguido não ignorava, nem podia ignorar”, refere ainda a juíza no despacho de pronúncia, colocando em contraste a atuação de Rui Moreira e da sua vice-presidente à época: “Quando lhe foi apresentado o acordo já formalizado, [Guilhermina Rego] teve a preocupação e o cuidado de se informar, de se inteirar se estavam a ser salvaguardados os interesses do Município, embora resulte do seu depoimento e da prova recolhida que lhe tivessem sido omitidas informações”.
A falsa “fragilidade”
Apesar das tentativas por parte da Selminho no sentido de levar por diante o objetivo de garantir autorizações para construir na escarpa da Arrábida, “não resulta, ao contrário do que pretende demonstrar a defesa do arguido, uma situação de fragilidade do município que levasse a alterar a forma como até então tinha sido conduzido o processo”, defende a juíza.
Ou seja, a posição frágil era, afinal, da Selminho, que não podia construir.
Para a magistrada, Rui Moreira “permitiu que se conduzisse o processo no sentido de o município alterar a posição que até ao momento defendia” e “no sentido de se fazer um acordo em que a CMP se propunha alterar o PDM em consonância com as pretensões da Selminho, e tudo isto sem que informasse a Assembleia Municipal, a quem cabia decidir sobre a alteração do PDM e sobre uma eventual indemnização, com vista a beneficiar a mesma empresa”. Ou seja, Rui Moreira agiu com o intuito “de beneficiar” os interesses da Selminho em detrimento do Município do Porto”. A argumentação do arguido em sua defesa caiu, pois, em saco roto. “São demasiadas coincidências, lapsos, distrações para vingar a imagem que se quis passar de alguém pouco avisado ou atento”.
Por fim, a juíza fundamenta a sua decisão na necessidade de haver “limites que têm de ser impostos à atuação daqueles que exercem o poder administrativo do Estado, sob pena de, como sucedeu no caso em apreço, perante a invocação do aludido interesse público, e em nome do mesmo, se poder, não só, perverter o seu próprio âmago como também violar a própria lei pondo, portanto, em crise, o modelo de uma administração estadual verdadeira e equitativa que o crime de prevaricação pretende proteger”.
“São demasiadas coincidências, lapsos, distrações para vingar a imagem que se quis passar de alguém pouco avisado ou atento”, refere o despacho de pronúncia
A reação de Moreira
“É uma decisão que lamento, pois sei que a acusação não tem qualquer fundamento e, por isso, procurei evitar o prolongamento do processo, sem recorrer a qualquer expediente dilatório, entendendo que o mesmo tinha custos desnecessários já que, tal como há quatro anos, estamos perante um processo que surge em vésperas de eleições”, reagiu Rui Moreira, ainda na tarde de terça, 18, alegando que a ida a julgamento não invalida a sua convicção: “Não tive qualquer participação em qualquer processo em que estivesse envolvida a minha família e não tomei direta ou indiretamente, ou por qualquer interposta pessoa, qualquer decisão que alterasse a posição do Município em qualquer processo judicial”, reforçou.
Rui Moreira considera “um insulto e uma infâmia” que se possa, sequer, por a hipótese de ter beneficiado a família, “para mais num assunto em que, como toda a gente sabe, a minha família acabou por perder os seus terrenos a favor da Câmara, e isso sucedeu exatamente neste meu mandato”, garantiu. Referiu-se depois aos “tempos perigosos” que vivemos. Tempos em que “os adversários se comportam como inimigos e aceitam usar todas as armas ao seu alcance, por mais ignóbeis que sejam”. Assegurando não pretender refugiar-se em argumentos processuais, prometeu encontrar no seu “compromisso com o Porto” as “forças para explicar aos portuenses que este processo não tem qualquer fundamento ou sentido”. E se dúvidas houvesse quanto ao facto de considerar este um caso de contornos políticos, disparou: “Quero dizer-vos e deixar bem claro, em particular àqueles que há muito me tentam afastar dos portuenses, que este processo não interferirá na avaliação política sobre a minha recandidatura a Presidente da Câmara Municipal do Porto. Isso seria uma traição a tudo aquilo em que acredito, bem como àqueles que sempre me apoiaram e que têm estado ao meu lado”.
Cioso da sua “integridade” e do “bom nome”, recordou “no preciso dia de seu nonagésimo adversário”, o exemplo do pai. “Sofreu na pele uma perseguição terrível. Venceu, sem nunca se ter vitimizado, sem nunca ter perdido o amor pela cidade e pela cidadania ativa. É a memória dele e da sua coragem que me inspira nestas provações. Posso assegurar-vos que aguentarei inabalável como o granito, pois acredito que a verdade prevalecerá e a Justiça, estou certo, chegará”, concluiu.