Há dois anos, Marcelo Rebelo de Sousa livrou-se de trabalhos por um triz. A descriminalização da morte medicamente assistida chumbou por cinco votos e o Presidente da República não teve de tomar decisões quanto a ela. Agora, a matemática é diferente. Conjugados, PS, BE, PAN, “Os Verdes”, Iniciativa Liberal e Joacine Katar Moreira, têm força suficiente para aprovar os cinco projetos que vão estar, esta quinta-feira, em discussão e, mais cedo ou mais tarde, depois do trabalho de especialidade e da votação final global, um decreto da Assembleia da República chegará ao Palácio de Belém.
Assumido opositor da eutanásia, Marcelo tem disfarçado mal o desconforto com o tema, até porque a relação de forças no Parlamento poderá obrigá-lo a promulgar, a contragosto, o articulado que venha a chegar-lhe às mãos. Os cenários são poucos e as chances do Chefe do Estado para travar esta “maçada” – como lhe chamou um dos seus conselheiros, sob anonimato, em declarações ao Expresso – são reduzidíssimas.
De acordo com a edição de sábado, 15, do mesmo semanário, a promulgação imediata, sem reparos, do diploma final que resulte da afinação das cinco propostas (PS, BE, PAN, PEV e IL) está excluída. O que conduziria a outros cenários. Desde logo, o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do articulado ao Tribunal Constitucional (TC), o que daria a Belém mais tempo para que o debate prosseguisse na sociedade – até porque há uma petição a defender o referendo e também alguns deputados do PSD, com Pedro Rodrigues à cabeça, a baterem-se pela consulta popular.
Por outro lado, se optasse pelo veto político, Marcelo poderia ainda voltar a acionar a hipótese do recurso aos juízes do Palácio Ratton quando a maioria parlamentar reconfirmasse a aprovação do decreto. A tática, aí, passaria pelo pedido de fiscalização sucessiva, cuja iniciativa poderia caber ao próprio Presidente ou a um conjunto mínimo de 23 deputados (um décimo dos parlamentares em efetividade de funções, como estipula a Lei Fundamental).
O TC surge, assim, como a escapatória mais óbvia para Belém salvar a face. Dessa forma, Marcelo não se comprometeria com um chumbo político num tema tão delicado na reta final do seu mandato e, por outro, como constitucionalista que é, poderia colocar a questão no plano estritamente jurídico. Sucede, porém, que até nesse ângulo de análise não há o mais pequeno vestígio de consenso.
A Constituição prevê, no artigo 24º, que “a vida humana é inviolável” (norma votada por unanimidade em 1976 e que nunca foi objeto de alterações nas várias revisões à mãe das leis) e isso dá argumentos aos anti-eutanásia. No entanto, o próprio presidente do TC, Manuel da Costa Andrade, já veio sinalizar que o artigo não deve ser interpretado de forma literal e já terá mesmo, também segundo o Expresso, alertado o Presidente para as fortes probabilidades de o diploma sobre a morte assistida superar o crivo dos conselheiros.
Em síntese, por mais que dificulte a conclusão do processo, este é daqueles casos em que Marcelo, católico dos quatro costados, dificilmente poderá fazer vingar a sua opinião. Além disso, são as suas próprias palavras a condicionar a sua atuação. Ainda antes de fazer caminho para Belém, garantiu que nunca usaria o veto como um veículo de afirmação das suas convicções.