Arguidos. Em 39 anos de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) em Portugal, ficaram célebres episódios em que os depoentes usaram a condição de arguidos em processos judiciais para não responderem aos deputados. Em 2010, aquando da investigação à alegada interferência do gverno de José Sócrates na tentativa de compra da TVI por parte da PT, Rui Pedro Soares escudou-se nessa prerrogativa – era arguido no âmbito do processo Face Oculta – para exercer o direito ao silêncio. Os deputados apresentaram queixa pelo crime de desobediência. Na primeira comissão de inquérito à falência e à nacionalização do BPN, José Oliveira e Costa recorreu ao mesmo expediente. Já nesta legislatura, Manuel Pinho fez saber que não falaria no Parlamento sobre a avença que receberia do BES ou sobre as rendas excessivas no setor energético sem ser, antes, ouvido pelo Ministério Público.
Batatas. Em maio de 1979, os deputados eleitos para a recém-criada Assembleia da República levaram para a instituição o controverso processo de importação da batata de semente para a campanha agrícola de 1978-1979. investigação foi requerida pela bancada do PCP, que apontava o dedo à anulação de um concurso público “para proteção de um cartel de importadores-armazenistas”, obtenção de “lucros especulativos” por parte desses grupos e ainda à “tentativa de suborno (ou a sua consumação)” de membros do governo de Carlos Mota Pinto. O assunto voltaria à colação no ano seguinte, num segundo inquérito parlamentar.
Cavaco. Se é verdade que o antigo presidente do PSD foi o primeiro-ministro mais longevo da democracia portuguesa, não é também negligenciável que Aníbal Cavaco Silva foi o chefe deExecutivos que mais comissões de inquérito viu nascer. Ao todo, entre 1985 e 1995, foram 26 averiguações parlamentares, com destaque para os casos da sisa do apartamento nas Amoreiras do ministro das Finanças Miguel Cadilhe, da construção do Centro Cultural de Belém e da privatização do Banco Totta & Açores ou ainda da aplicação do Fundo Social Europeu.
Depoimentos. É da lei: os deputados podem convocar qualquer cidadão para depor na AR. No entanto, segundo o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, “gozam da prerrogativa de depor por escrito, se o preferirem, o Presidente da República, os ex-presidentes da República, o presidente da Assembleia da República, os ex-Presidentes da Assembleia da República, o primeiro-ministro e os ex-primeiros-ministros”, o que terão de fazer num prazo máximo de dez dias desde que são notificados. Além disso, é prática parlamentar que os depoentes possam ler uma declaração escrita no início das audições. Oliveira e Costa detém um recorde que esgotou a paciência e a deputados e jornalistas: leu um documento de 57 páginas, durante três horas, quando foi ouvido pela segunda vez na primeira CPI ao escândalo BPN.
Envelope 9. Era um envelope apenso ao processo Casa Pia, no qual estariam cinco disquetes com registos detalhados do telefone fixo de Paulo Pedroso e com milhares de chamadas telefónicas realizadas por 208 personalidades, entre as quais titulares de órgãos de soberania (desde logo do Presidente da República, Jorge Sampaio). O caso foi revelado em janeiro de 2006 pelo jornal 24 Horas. Além do inquérito–crime, que culminou na acusação de dois jornalistas pelo acesso indevido a dados pessoais – embora o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa tenha decidido não os levar a julgamento –, houve uma CPI cujo relatório ilibou o Ministério Público de qualquer responsabilidade grave e apenas apontou uma conduta negligente à PT por ter enviado para os investigadores daquele escândalo de pedofilia – sem que, alegadamente, estes as tenham pedido – as ditas disquetes.
Fundo Social Europeu. O caso remonta aos anos 1988 e 1989, quando Portugal recebia os “camiões” de dinheiro dos fundos comunitários. De um deles, o Fundo Social Europeu, terão sido canalizados de forma fraudulenta 358 mil contos (1,8 milhões de euros) para formação profissional promovida pela UGT. O Ministério Público investigou e deduziu acusação contra 36 arguidos, 23 dos quais pessoas singulares, levando ao banco dos réus três antigos dirigentes da central sindical: José Manuel Torres Couto, João Proença e Rui Oliveira e Costa, todos absolvidos por falta de provas. Em 2017, a central sindical chegou a acordo com Bruxelas para pagar 7 500 euros por mês durante 25 anos de forma a saldar a dívida.
Guerra. É uma constante sempre que alguns Governos (ou responsáveis da Administração Pública ou do setor empresarial do Estado que dependem de nomeações políticas) são visados pelos inquéritos. Nos últimos anos ficaram célebres os ataques e as defesas a governadores do Banco de Portugal, sobretudo Vítor Constâncio e Carlos Costa, bem como à equipa de gestores da CGD encabeçada por António Domingues. Regra geral, o combate é notório – e tem-se dividido entre esquerda e direita – na tentativa de controlo do relator, o deputado responsável por redigir as conclusões da CPI. As maiorias parlamentares, admitiram conjunturalmente as diversas bancadas, condicionam a imparcialidade dos relatórios.
Horários. Embora a contabilização das horas de inquirição não esteja feita, a memória de quem participou ou acompanhou a CPI pode ajudar. Num dos inquéritos sobre o BPN, Vítor Constâncio foi ouvido por duas vezes: oito horas em cada (a última das quais terminou às 3h da manhã). Regressado de uma viagem de trabalho, foi também a horas adiantadas (21h) que Zeinal Bava foi ouvido na investigação à Fundação para as Comunicações Móveis. A audição acabou de madrugada. Em dezembro de 2014, no inquérito ao colapso do BES e do Grupo Espírito Santo (GES), Ricardo Salgado esteve na Sala 6 da AR durante mais de nove horas, e a maratona continuou com José Maria Ricciardi, que respondeu a perguntas dos deputados durante mais seis horas.
Interferência. “Não respondi presencialmente porque percebi bem o que os deputados da oposição queriam fazer. Queriam humilhar-me, a mim e à posição do primeiro-ministro.” Foram estas as palavras de José Sócrates quando questionado sobre o facto de ter respondido por escrito às 70 perguntas feitas pelos deputados, no âmbito da alegada interferência do seu governo na tentativa de compra da Media Capital (detentora da TVI) por parte da PT. O relatório da CPI, que ficou a cargo do então deputado do BE João Semedo, concluiu que o Executivo do PS interveio por duas vezes na operação e que o ex-chefe do governo não disse a verdade ao Parlamento.
Jornal Nacional. Apresentado por Manuela Moura Guedes, era emitido às sextas-feiras e era um dos fatores do incómodo para José Sócrates e Armando Vara por causa da cobertura do Caso Freeport. Na CPI que investigou o negócio, o jornalista Carlos Enes, que integrava a equipa do Jornal Nacional, relatou um jantar, que terá acontecido em dezembro de 2005, com um assessor do primeiro-ministro e dois deputados do PS, que o avisaram de que “a contrapartida para o beneplácito do Governo para a entrada de um grupo estrangeiro [Prisa] no capital da TVI” seria o facto de “Manuela Moura Guedes ser afastada dos ecrãs”. O telejornal acabou suspenso.
Limitações. Ao abrigo do seu próprio regime jurídico (revisto em 1993, 1997 e 2007), as comissões de inquérito “gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados”. Portanto, sendo certo que a recusa de algum cidadão em comparecer no Parlamento ou em responder aos deputados pode configurar o crime de desobediência qualificada, em 1997 a lei veio dificultar o processo: o fornecimento de documentos e a prestação de esclarecimentos podem ser negados, invocando, por exemplo, segredo de Estado ou segredo de Justiça.
Ministério Público. Ainda segundo a lei, o presidente da Assembleia da República está obrigado a informar o procurador-geral da República acerca da natureza do inquérito e, aí, a pessoa que encabeça o Ministério Público responde quanto à existência ou não de algum processo criminal sobre o caso investigado. Existindo, cabe aos deputados decidir se esperam ou não pelo trânsito em julgado da respetiva sentença judicial. Além disso, mesmo estando prevista a troca de informação entre o Parlamento e as autoridades judiciárias, revelam as 78 CPI realizadas cuja a utilidade tem sido diminuta. Os relatórios finais têm sido remetidos ao MP e pouco mais. Explicação? As conclusões são quase sempre políticas.
Nacionalização. Um banco, duas comissões de inquérito, dezenas de processos em curso na Justiça, zero pessoas presas. Há dez anos, o então ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, anunciou que o BPN, propriedade da SLN, seria nacionalizado e a sua gestão entregue à CGD, decisão que viria a desencadear duas investigações (2009 e 2012) na AR, pelas quais desfilaram figuras destacadas dos governos de Cavaco Silva, como Dias Loureiro, Oliveira e Costa e Duarte Lima. Logo no primeiro inquérito, percebeu-se o esquema utilizado por aquela cúpula: do BPN saía dinheiro para offshores da SLN, que entrava, depois, nessas empresas. Pelo meio, outro banco do grupo, o Banco Insular, escapava à malha do Banco de Portugal, também torpedeado pela ineficácia na supervisão. A fatura para os contribuintes, estimada pelo Tribunal de Contas no final de 2016, será superior a 3,7 mil milhões de euros.
Oliveira e Costa. O principal processo relacionado com a gestão e a queda do BPN envolve o seu ex-presidente, Oliveira e Costa, condenado a 14 anos de prisão, embora a decisão, objeto de vários recursos, não tenha ainda transitado em julgado. Esta semana, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva foi também condenado a 12 anos de prisão, por dois crimes de burla, num dos casos extraídos do dossier BPN, que se prendia com a aquisição de terrenos por valores superiores a 50 milhões de euros, com recurso a crédito do banco.
PPP. O nome era pomposo: Comissão Parlamentar de Inquérito à Contratualização, Renegociação e Gestão de Todas as Parcerias Público-Privadas do Setor Rodoviário e Ferroviário, e as audições arrancaram no primeiro trimestre de 2012. Contudo, o combate partidário impediu que a investigação às decisões políticas secundasse a investigação judicial que o então procurador-geral da República, Pinto Monteiro, anunciara, depois de uma auditoria do Tribunal de Contas ter revelado que vários contratos de subconcessões rodoviárias falharam o visto prévio dos juízes, traduzindo-se num agravamento dos encargos na ordem dos 700 milhões de euros. Mário Lino, António Mendonça e Paulo Campos estiveram sob escuta no âmbito desta investigação.
Quórum. O episódio servirá para memória futura: quando, já nesta legislatura, foi votado o relatório final da primeira CPI à gestão e à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos, a ausência de dois deputados do PS desequilibrou a balança. O corpo do texto redigido pelo socialista Carlos Pereira, com enquadramento, análise e conclusões, não passou porque PS, BE e PCP só dispunham de sete votos, justamente os mesmos que o PSD (que também tinha uma baixa) e o CDS totalizavam. Em caso de empate, os relatórios chumbam. Tudo poderia ter sido evitado se, como prevê a lei, os lugares dos absentistas tivessem sido ocupados por suplentes.
Resultados. São o tendão de Aquiles das CPI. Fruto de uma enorme mediatização, algumas resvalam para o plano da retórica ou dos comícios partidários, e a perceção generalizada é de que raramente têm efeitos práticos. Não existem sequer dados que permitam aferir quantos inquéritos judiciais decorreram de investigações na AR, mas em São Bento já se vai admitindo, em surdina, aquilo que parece óbvio: ou os poderes das CPI são reforçados ou estas dificilmente serão mais do que meras arenas políticas.
Swaps. Em 2013, Maria Luís Albuquerque esteve sob fogo por causa da investigação à subscrição de swaps (contratos de cobertura de risco que implicam quase sempre perdas para uma das partes, uma vez que a taxa de juro do empréstimo é imutável, cabendo a uma das partes pagar a diferença entre a taxa fixa e a variável) por parte de oito empresas públicas. Mais de 40 audições desaguaram num relatório de 434 páginas, redigido por Clara Marques Mendes (PSD), duro para a atuação do governo de José Sócrates, para os gestores públicos e para os bancos, e suave para a ex-ministra das Finanças e antiga secretária de Estado do Tesouro. A agora deputada social-democrata foi acusada de ter faltado à verdade, pela oposição, depois de ter dito que a polémica que envolvia aqueles derivados lhe rebentou nas mãos, mesmo perante a divulgação de emails trocados com antigos diretores da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, em que estes alertavam para a extensa lista de swaps subscritos, assim como para os riscos de alguns contratos.
Terreiro do Paço. Em outubro de 2002, o PSD e o CDS avançaram com um inquérito ao acidente ocorrido a 9 de junho de 2000, no Terreiro do Paço, quando uma infiltração de água travou o avanço das obras de alargamento da rede do Metropolitano de Lisboa. Antes de ter início a investigação parlamentar, Jorge Coelho (que era ministro do Equipamento Social) mandou averiguar o que se tinha passado, e os técnicos da comissão nomeada pelo Governo responsabilizaram todas as entidades intervenientes no empreendimento: o projetista, o empreiteiro e a fiscalização. Os sociais-democratas e os centristas visavam, porém, o sucessor de Coelho na pasta, Ferro Rodrigues: diziam que o agora presidente da Assembleia da República tinha ilibado o consórcio responsável pelas obras (a Metropaço) e denunciavam a existência de um acordo celebrado entre o Metro e o empreiteiro, de maio de 2001, que ilibava a construtora e renunciava a indemnizações a que esta estaria obrigada.
U. É precisamente com a forma de um U que as mesas costumam ser dispostas nas salas onde decorrem os trabalhos das comissões de inquérito. À esquerda, sentam-se os deputados do PS, do BE e do PCP e, à direita, os lugares são ocupados pelos parlamentares do PSD e do CDS. À cabeceira, as cadeiras são preenchidas pelo presidente, que conduz os trabalhos, e pelos depoentes e staff que os acompanham (advogados, assessores, etc.).
Vilarinho. O ex-presidente do Benfica Manuel Vilarinho passou pelo Parlamento em setembro de 2002, para esclarecer os alegados favorecimentos do governo de Durão Barroso ao clube da Luz, designadamente a aceitação pelo Estado de ações da SAD encarnada como garantia de dívidas fiscais em execução. Vilarinho disse que os sociais-democratas ajudaram apenas a resolver um problema relacionado com a construção do novo Estádio da Luz, garantindo ainda que nunca conversou com quem quer que fosse às escondidas. A bancada socialista, proponente da CPI e que se bateu para que Durão Barroso fosse à AR revelar as conversas que manteve com Vilarinho, durante a campanha eleitoral que sucedeu à demissão de António Guterres, era à data chefiada por António Costa. O relatório concluiu que não ficou provado qualquer favorecimento.
X. Convertamos para numeração romana: o X significa dez, o número de vezes que o Parlamento investigou a tragédia ocorrida a 4 de dezembro de 1980, em que a queda do Cessna sobre o Bairro das Fontainhas, em Camarate, vitimou o primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, outros três passageiros e os dois pilotos do avião. O principal impulsionador das últimas CPI, José Ribeiro e Castro (ver caixa), já escreveu que existem “provas insofismáveis” de que se tratou de um atentado.
Zeinal Bava. Pode não ser um recorde absoluto, mas o antigo presidente-executivo da PT e da Oi está no top de presenças em CPI. Bava foi ouvido no âmbito da investigação à compra da TVI e, na mesma altura, esteve no Parlamento para falar sobre a polémica em torno da Fundação para as Comunicações Móveis. No entanto, para o arquivo dos tesourinhos deprimentes das CPI entrou o episódio das múltiplas falhas de memória (ver caixa) quando confrontado, em fevereiro de 2015, com as diversas questões sobre como a PT enterrou 900 milhões de euros na RioForte (holding do GES).