Em Pedrógão Grande, já são poucos os que tentam domesticar a revolta que há um ano, desde o trágico incêndio que lavrou a 17 de junho de 2017, os vai consumindo. Ao luto pela morte de 66 pessoas – contabilizando as perdas nos concelhos limítrofes – soma-se a indignação provocada pelos trabalhos de reconstrução e acumulam-se as denúncias contra dezenas de vizinhos que terão beneficiado de apoios indevidos. Os relatos, até este verão feitos em surdina e quase abafados pelo ruído de betoneiras, picaretas e serrotes, tornaram-se audíveis – e chegam acompanhados da cartografia das alegadas injustiças.
Na edição nº 1324, que foi para as bancas a 19 de julho, a VISÃO revelou os primeiros esquemas utilizados para fintar os regulamentos e que, conjuntamente, implicariam um desvio de meio milhão de euros – o montante poderá, afinal, ser substancialmente superior – de donativos destinados a obras urgentes para reconstruções de casas que não eram prioritárias – algumas não tinham residentes ou nem sequer arderam. O truque de alteração das moradas fiscais em datas posteriores aos fogos funcionou, mas agora o Ministério Público já tem em sua posse 113 processos de apoio (21 dos quais decorrentes do trabalho da VISÃO e de duas reportagens subsequentes da TVI).
Este é o sétimo caso polémico:
A situação de Lurdes Ventura Dias, familiar de Bruno Gomes, será porventura a mais intrigante de todas. A Câmara Municipal de Pedrógão Grande instruiu o processo como se de uma habitação permanente se tratasse, e a recuperação, ainda em execução, da casa na Rua da Bela Vista, em Aldeia das Freiras, foi atribuída à União das Misericórdias Portuguesas e à Fundação Calouste Gulbenkian por 76 269,96 euros.
Lurdes Ventura Dias apresentou a certidão permanente de registo predial e a caderneta predial urbana do prédio que, segundo a CCDRC, é descrito como “uma morada de casas”, ou seja, a outra metade do imóvel (intervencionada pela Cáritas de Coimbra) pertence ao cunhado, António Mendes Antunes.
Seja como for, uma vez mais, é a cronologia fiscal a trair a requerente, conforme os documentos que a VISÃO consultou. Desde 24 de setembro de 2014, Lurdes Ventura Dias teve como domicílio fiscal a Rua Pasteur 1, Champigny-sur-Marne, em França, que só viria a alterar para Vila Facaia a 25 de outubro de 2017. E o marido, Manuel Paiva, nem sequer abdicou da morada francesa.
Quando a VISÃO visitou a Rua da Bela Vista, encontrou Maria Luísa Carvalho, cuidadora de uma idosa ali residente. Perguntou por Lurdes Ventura Dias, e a resposta foi lesta e desarmante, ao apontar para o edifício dominado pela cor dos tijolos e ainda sem número na porta: “Nunca cá vi ninguém a viver! Estão mais em França do que aqui. E vocês estão a dar dinheiro…”
Deonilde Feteira, que gere o Café 2002, onde muitas denúncias de irregularidades foram feitas em conversas informais, alinha com Maria Luísa Carvalho. “Bem, há 25 anos que lá não vivia ninguém. Com o Bruno [Gomes] foi tudo para a família; os outros não apanharam nada”, dispara.