Quando, em fevereiro de 2016, os inspetores da Polícia Judiciária e os procuradores do Ministério Público fizeram buscas no escritório da sociedade APBD, local de trabalho de Paulo Blanco – advogado representante do estado angolano e de altos dirigentes daquele país – descobriram que aquele escritório era uma espécie de arquivo de rascunhos de despachos do Ministério Público. Isto é, despachos não assinados, e que como tal não poderiam ter chegado ao escritório por via oficial. Todos eles diziam respeito a processos que corriam contra Manuel Vicente, actual vice-presidente da República de Angola, e contra outras figuras com altos cargos naquele país, como os generais conhecidos por “Dino” e Kopelipa”, ou o ex-presidente do BES Angola, Álvaro Sobrinho.
Na sequência de uma denúncia anónima que tinha sido enviada para a Procuradoria-Geral da República (PGR), a equipa de investigação liderada pela procuradora Inês Bonina procurava naquelas buscas indícios contra o procurador Orlando Figueira, suspeito de, a troco de contrapartidas, ter tomado decisões favoráveis a altos dirigentes angolanos em processos que tinha conduzido no DCIAP até 2012, ano em que pediu uma licença sem vencimento para ir trabalhar para o setor privado. Mas acabou por ser surpreendida com a descoberta de despachos de processos que foram conduzidos por outro procurador da República: Paulo Gonçalves, que desempenhou funções no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), ficando a acompanhar alguns inquéritos que corriam contra dirigentes angolanos após a saída de Orlando Figueira.
Foram encontrados pelo menos dois despachos de Paulo Gonçalves, não assinados. Foi ainda descoberto o currículo do procurador, bem como documentos e fotografias de uma casa na Guia, no Algarve, de que era proprietário.
Paulo Blanco veio a ser constituído arguido nessa altura e já em fevereiro deste ano foi acusado de quatro crimes (corrupção ativa, violação do segredo de justiça, branqueamento de capitais e falsificação de documento). Apesar de ter ficado claro num despacho que sustenta o perigo de perturbação do inquérito contra Paulo Blanco, e que consta dos autos do processo que a VISÃO consultou, que o advogado tinha continuado a ter acesso a informações secretas sobre processos pendentes e a obter um “tratamento favorável” do DCIAP já depois da saída de Orlando Figueira daquele departamento, e de o mesmo despacho referir que os documentos encontrados teriam sido “facultados pelos procuradores” a Paulo Blanco, “em claro favorecimento e com violação dos seus deveres profissionais”, o procurador Paulo Gonçalves não foi chamado a dar explicações no processo.
Contactado pela VISÃO, o magistrado confirma não ter tido qualquer “conhecimento formal dos factos”, não tendo sido chamado para prestar declarações. Diz ainda não conseguir explicar como aqueles documentos terão ido parar à posse do advogado que representava os interesses daqueles angolanos em Portugal. Consegue apenas explicar a razão pela qual haveria documentos respeitantes a uma casa sua no escritório de Paulo Blanco: “Tinha posto a casa à venda e poderei ter-lhe mencionado isso durante os nossos contactos, mas entretanto até vendi essa casa a outra pessoa.”
A VISÃO também enviou perguntas à Procuradoria-Geral da República para averiguar se tinha sido apresentada alguma queixa disciplinar ou sido aberto algum inquérito-crime autónomo para investigar a conduta do procurador Paulo Gonçalves na condução daqueles processos, mas ainda não obteve respostas.
Paulo Blanco pediu para sair do DCIAP em 2014, continuando na mesma a desempenhar funções no Ministério Público. Durante os anos em que trabalhou naquele departamento, foi um dos vários procuradores responsáveis pelo processo principal dos submarinos (que acabou arquivado) tendo também iniciado o inquérito à Tecnoforma que investigava se teriam sido pagos montantes elevados a Pedro Passos Coelho e fugindo ao fisco.
Paulo Gonçalves viria também a arquivar alguns dos inquéritos herdados contra dirigentes angolanos, dando até azo a uma polémica. No final de 2013, alguns jornais escreveram que teria feito comentários subjectivos no despacho de arquivamento de um processo contra o vice-presidente angolano Manuel Vicente. A repercussão foi tal que a própria PGR anunciou que iria abrir um inquérito disciplinar contra o magistrado. Acontece que, como a VISÃO revelou na altura, as considerações atribuídas a Paulo Gonçalves tinham, na verdade, sido feitas pela defesa de Manuel Vicente ao longo do processo.
Seria a defesa de Vicente e não Paulo Gonçalves a argumentar, por exemplo, que o cargo de vice-presidente da República de Angola constituía uma “desigualdade” ou que seria “inaceitável, senão mesmo absolutamente incompreensível que, face à diária degradação das relações entre os dois países em consequência de falsidades publicadas na imprensa portuguesa” se deixasse continuar o nome de Vicente, “de outros governantes angolanos e da própria República de Angola na fogueira mediática”.
Intermediário de Angola circulava “livremente” pelo DCIAP
Dos documentos descobertos no escritório de Paulo Blanco constava uma carta enviada ao general Leopoldino Fragoso do Nascimento dando-lhe conhecimento do “contacto permanente com o magistrado do Ministério Público” titular de determinado inquérito “com vista ao arquivamento do processo”; o rascunho de um despacho do Ministério Público “eventualmente produzido” por aquele advogado referente à empresa Portmill Investimentos e Telecomunicações; a cópia de um despacho “exarado pelo Dr. Paulo Gonçalves” sem que estivesse assinado; a cópia de uma carta de Outubro de 2013 enviada por Paulo Blanco ao general Helder Junior, dando conta de que o processo relacionado com a compra de apartamentos no Estoril Sol Residence iria ser arquivada no DCIAP; outra cópia de uma carta datada de agosto de 2013 e enviada a Zandre Eudénio de Campos Finda, justificando a reabertura de um inquérito e garantindo que o processo seria arquivado; e ainda cópia de um email enviado ao procurador-geral da República de Angola, João Maria de Sousa, referindo que o processo havia “sido reaberto por pressão e intervenção de falso amigo”.
Foram ainda encontradas cópias de outro despacho do procurador Paulo Gonçalves, não assinado; a cópia de dois despachos de Orlando Figueira, também sem assinatura, um deles respeitante a um recurso do ex-presidente do BES Angola, Álvaro Sobrinho; e ainda coisas tão bizarras como uma nota escrita à mão numa folha timbrada do DCIAP com a identificação de uma equipa de investigação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ.
Num dos interrogatórios mais inesperados do processo, uma funcionária do DCIAP que trabalhara com Orlando Figueira contou que Paulo Blanco “entrava e circulava livremente no DCIAP por todos os andares sem que tivesse conhecimento de que a sua presença fosse controlada” e que teria aliás o hábito “de tratar todos os funcionários por tu” e de demonstrar “um à vontade desadequado” que gerava “desconforto entre todos os funcionários” do departamento. A funcionária disse ainda recordar-se de encontrar com frequência Paulo Blanco à conversa com Orlando Figueira no seu gabinete e de ter ficado altamente surpreendida quando lhe foi pedido pelo procurador para apagar todas as referências a Manuel Vicente de um processo arquivado. Contou ter ficado aliás sem saber “se o devia cumprir ou não cumprir”, tendo acabado por recortar todas as referências ao vice de Angola do processo mas sempre estranhado, pois o habitual seria “mandarem fechar em caixas seladas com fita-cola e fio documentos que não deveriam permanecer acessíveis”.
O Ministério Público diz que Orlando Figueira terá recebido 760 mil euros nas suas contas bancárias – em Portugal e em Andorra – para favorecer Manuel Vicente, o então presidente da Sonangol que não queria perder a oportunidade de entrar para o governo de José Eduardo dos Santos nas eleições que se aproximavam.
O primeiro inquérito contra Manuel Vicente viria a ser arquivado a 12 de janeiro de 2012, quatro dias depois de Orlando Figueira abrir uma segunda conta bancária onde viria a receber logo de seguida 210 mil euros com origem na sociedade Primagest, conectada com a Sonangol, de que Vicente era presidente quando começou a ser investigado pelo Ministério Público português.
Esse processo nascera de outro que corria contra vários angolanos e estava relacionado com a compra de apartamentos no empreendimento de luxo Estoril Sol Residence. Orlando Figueira terá decidido autonomizar num novo processo a parte que dizia respeito a Manuel Vicente, vindo a arquivá-lo sete dias depois. Para o Ministério Público não há explicações plausíveis para as coincidências das datas das decisões tomadas pelo procurador e dos depósitos que foram caído nas suas contas.
Figueira é acusado de corrupção passiva, de violação do segredo de justiça, de branqueamento e de falsificação de documento, os dois últimos em co-autoria com os restantes arguidos. Os outros arguidos acusados são Manuel Vicente, o advogado Paulo Blanco e Armindo Perpétuo Pires, que seria uma espécie de testa-de-ferro de Manuel Vicente em Portugal, representando os seus interesses em assuntos de natureza fiscal, financeira e empresarial. Os três deverão responder, em co-autoria, por um crime de corrupção ativa, um crime de branqueamento e um crime de falsificação de documento. Paulo Blanco é ainda acusado de um crime de violação do segredo de justiça, em conjunto com Orlando Figueira.
Alguns dos processos que Orlando Figueira deixou pendentes, contra outras altas figuras de Angola, acabariam arquivados por Paulo Gonçalves. Foi o caso de um processo contra o general Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, ministro de Estado e chefe da Casa Militar de Angola. Amadeu Guerra mandou reabrir o caso, ordenando novas diligências. A defesa do general angolano recorreu.