As conversas, reuniões e pressões dos banqueiros portugueses, nos dias “negros” de setembro de 2008, há cinco anos, quando o Lehman Brothers faliu, e 40% da riqueza mundial “desapareceu”. Desde então, pouco ou nada mudou. Exceto, claro, nas nossas vidas…
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Nuno Teles, economista, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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Carlos Costa Pina, secretário de Estado do Tesouro quando a crise financeira rebentou
Por estes dias, o nome de Vítor Constâncio, vice-presidente do BCE, circula em Bruxelas e Frankfurt como “um dos nomes mais fortes” para encabeçar o Mecanismo Único de Supervisão da Banca europeia, aprovado na quinta-feira, 12, em Estrasburgo. Segundo deputados da Comissão de Economia do Parlamento Europeu, Constâncio é mesmo o candidato principal a este cargo, uma das principais novidades, provocadas pela crise de 2008.
Na quarta-feira da semana passada, 11, outras memórias da crise regressaram ao noticiário.
O BCP, o BPN e o BPP estão entregues aos tribunais. A lista é fastidiosa: Oliveira e Costa, Dias Loureiro e vários ex-responsáveis do BPN, Jardim Gonçalves e cinco ex-administradores do BCP, João Rendeiro e vários ex-administradores do BPP. Nenhum foi condenado, embora todos tenham sido acusados e tenham contra si infindáveis páginas de processos do Banco de Portugal (BdP) e da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).
Há cinco anos, tudo era diferente.
No início de agosto de 2008, as cinco estrelas do Lake Resort, em Vilamoura, eram poucas para dividir pelas figuras da alta finança que ali comemoravam. O aniversário de Paula Caetano, mulher de Horácio Roque, o homem-forte do Banif, juntou muitos improváveis parceiros de brinde. A festa parece, a esta distância, o fim de uma era.
Américo Amorim, o acionista do BIC, de capitais luso-angolanos, que viria a comprar o BPN, convivia com Alípio Dias. Este, ex-administrador do BCP, acabara de perder a guerra pelo controlo do banco para, entre outros, os capitais angolanos da Sonangol. Lado a lado (e a receber efusivos “beijinhos”, segundo uma nota do Expresso), Alípio e Joe Berardo, o acionista que liderou a campanha contra Jardim Gonçalves e deitou por terra o valor das ações do BCP. Nessa guerra pelo BCP, João Rendeiro, homem forte do BPP, era aliado de Berardo. Contra Alípio Dias que tinha, em tempos, tentado evitar que o BPP abrisse as portas. Todos juntos, celebravam.
Faltava um mês e meio para a falência do Lehman Brothers.
O clima internacional era sombrio, havia, pelo menos, um ano, com as notícias ainda que difusas das complicações no mercado hipotecário norte-americano. A economia estava estagnada. As taxas de juro subiam.
Os preços das matérias-primas disparavam. Eram sinais de perigo.
Portugal e as Seychelles
Em Portugal, os tempos ainda não eram difíceis para a banca, que valia cerca de três vezes mais que a economia do País.
“O setor financeiro, sobretudo a banca, é sem dúvida o mais poderoso da economia portuguesa, e tutela a política económica”, explica Nuno Teles, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Nuno apresentou, na passada quinta-feira, em Londres, a sua tese de doutoramento sobre “financeirização da economia”.
Esse poder aumentou, graças à moeda única europeia: “O setor financeiro nacional teve a oportunidade de se endividar no exterior, de forma quase ilimitada, a preços muito baixos. Contudo, aliado à tradicional falta de competitividade da nossa indústria, a banca optou por colocar todo este capital disponível em setores onde o seu lucro estava garantido, nomeadamente a construção e imobiliário. A banca financiava o construtor e, em seguida, financiava o comprador, ficando com o imóvel como garantia.” O resultado foi um endividamento líquido recorde ao exterior, apenas ultrapassado pelo das Seychelles.
A indústria transformadora recebia 40% do crédito bancário destinado a empresas, em meados dos anos noventa. Na nossa década, esse valor caiu para metade, “em torno dos 20%”, conclui Teles. Além do crédito com “lucro garantido”, a banca apostou na área do “rentismo” (rent-seeking), nas palavras de Joseph Stiglitz, o ex-coordenador da equipa de assessores económicos de Clinton, e prémio Nobel da Economia. São rendimentos de “rendas” garantidas pelo Estado, como as PPP, em Portugal.
E é assim que a crise de Wall Street tem um elo com a crise portuguesa. Os credores da banca portuguesa eram, em grande medida, os mesmos do falido mercado hipotecário norte-americano: os grandes bancos do Norte da Europa.
Um brinde com ‘mimosas’
O problema desta crise começa na própria linguagem. A finança tem uma língua própria (ver A novilíngua da crise) e movimenta números que, para qualquer cidadão, são meras abstrações. A complexidade das operações bancárias, que estão na origem da crise que ainda vivemos, é entediante. Tudo isso faz com que, ainda hoje, cinco anos depois, seja difícil responder à pergunta mais simples: o que se passou? 16 de março de 2008. O Bear Sterns, 5.º maior banco americano, foi “salvo” in extremis, da falência. O seu rival JP Morgan comprou por 2 dólares ações que valiam 172 dólares um ano antes. A Reserva Federal (Fed) comprometeu-se a “limpar” 30 mil milhões de dólares de “lixo” tóxico que infetava o balanço do banco. Numa palavra: subprime.
Na manhã desse domingo, 16, os responsáveis por alguns dos hedge-funds que apostaram contra o Bear Sterns comemoraram a derrocada do “inimigo” com um pequenoalmoço no Hotel Four Seasons de Manhattan, “fazendo brindes com mimosas [um cocktail de sumo de laranja com champanhe] preparadas com garrafas de $350 de Cristal.” (Andrew Ross Sorkin, Too Big To Fail, Penguin).
Os bancos têm um poder quase divino: podem “fazer” dinheiro. A maneira mais fácil é emprestá-lo. A nossa dívida é um “ativo”.
Dinheiro que, antes, não existia. No caso dos empréstimos subprime, era a galinha dos ovos de ouro: 2 000 000 000 000 de dólares. Dois biliões. Para se ter uma ideia: algumas das maiores empresas mundiais, juntas, como a Apple, a Amazon, o Google e o Facebook, valem apenas metade dessa quantia.
Os norte-americanos, mesmo aqueles que não tinham documentos, emprego ou qualquer tipo de bens, foram aliciados a contrair empréstimos avultados. Entre 2003 e 2005, pediram emprestados 3,7 biliões de dólares.
Mais ou menos o mesmo montante que foi acumulado nos EUA, em poupanças, nos últimos 200 anos… (Matt Taibbi, Griftopia, Spiegel & Grau) Para se precaverem do risco destes estranhos empréstimos, os bancos criaram “seguros ” de risco (CDS, CDO, CLO, swaps, ver glossário) que mais não fizeram do que contaminar todo o sistema bancário. Allan Greenspan, ex-governador da Fed, elogiou os bancos pela “inovação” e disse que estes produtos, que ele próprio batalhou por desregular, comportavam riscos “negligenciáveis “. As agências de rating ajudaram, dando notações altas a estas “armas de destruição maciça”, como lhe chamou Warren Buffett, o multimilionário norte-americano.
Foi uma festa, enquanto durou. Os CEOs, que não percebiam bem o que os seus “quants”, analistas quantitativos, faziam com estes produtos, receberam bónus gigantescos pelos lucros que não paravam de aumentar. Até que rebentou a “bolha”.
Quando o mercado do subprime começou a cair, o Banco Central Europeu e a Reserva Federal americana abriram a bolsa aos bancos, para prevenir “o risco significativo de uma crise bancária”, como lembra o economista grego Costas Lapavitsas, no seu livro Crisis in the Eurozone. Os bancos usaram essa “liquidez” dada pelos bancos centrais para “aumentarem os seus empréstimos aos países da periferia” na Europa. “A garantia era de que as bancarrotas na Zona Euro seriam impossíveis.” (Lapavitsas) 15 de setembro de 2008. O Lehman Brothers faliu.
No dia seguinte, o Governo americano injetou os primeiros 85 mil milhões de dólares na seguradora AIG. O próprio Presidente Bush não conteve o pavor: “É suposto uma companhia de seguros fazer estas coisas?”, questionou, ao ser informado do problema dos credit default swaps.
Reuniões e inconfidências
Parte desse dinheiro, pago pelos contribuintes americanos, veio diretamente para a Europa.
Os grandes bancos europeus eram os mais expostos ao subprime .
Em setembro de 2008, Portugal era um país muito diferente do que é hoje. Tinha uma dívida pública de 68%, face ao PIB, cerca de metade da que tem atualmente, passados cinco anos, quatro deles vividos em “austeridade”.
A Europa decidira gastar, para mitigar o efeito recessivo da crise. O efeito combinado da política “expansionista” com a diminuição dos impostos, causada pela crise, pusera as contas públicas no vermelho.
4 da tarde, hora de Washington DC, de quinta-feira, 25 de setembro de 2008. À volta de uma mesa oval, na Casa Branca, John McCain, o candidato republicano e Barack Obama, o seu adversário democrata, sentaram-se, rodeados pelo Presidente, George W. Bush, o seu vice, Dick Chenney, e o poderoso secretário do Tesouro, Hank Paulson.
Ao seu estilo, Bush deixou uma frase para a posteridade: “Se não soltamos o dinheiro, esta porcaria pode cair ao chão.” (Too Big To Fail, Penguin) Bush tentava convencer os dois partidos a aprovar o plano de Paulson, o TARP (Programa de Auxílio para Ativos Problemáticos), no valor de 700 mil milhões de dólares, uma inédita injeção de dinheiros públicos no sistema financeiro, para “limpar” das contas dos bancos o lixo “tóxico” que tinham acumulado em operações complexas e arriscadas. Houve quem chamasse a este “resgate” o “socialismo dos ricos”.
Por essa altura, em Lisboa, também havia reuniões de alto nível. Vítor Constâncio mandou chamar, na terça-feira, 30 de setembro, ao Banco de Portugal (BdP), cinco banqueiros: Faria de Oliveira, da CGD, Carlos Santos Ferreira, do BCP, Fernando Ulrich, do BPI, Ricardo Salgado, do BES, e Nuno Amado, do Santander-Totta. A conversa, rigorosamente sigilosa, fora marcada a propósito da crise americana. Mas o habitualmente fleumático governador deixou escapar uma preocupação: “A situação de dois pequenos bancos portugueses.” Os bancos nunca foram nomeados, mas, naquela sala, ninguém tinha dúvidas: tratavase do BPN e do BPP. Os visados souberam, rapidamente.
No sábado seguinte, 4 de outubro, uma notícia do Expresso relatava a reunião.
Miguel Cadilhe ficou indignado com esta “inconfidência”. À frente do BPN desde 24 de junho de 2008, Cadilhe tentava encontrar uma solução para o banco e para a sociedade que o detinha (a SLN). E corre contra o tempo. Em quatro meses, descobre 96 offshores escondidos e um banco, o Insular, que servia para ocultar prejuízos e lucros, financiar empresas do grupo e esconder operações.
Entre os obstáculos de Cadilhe, que eram muitos, estava o receio, do BdP de um “contágio ” americano a Portugal. Não pelo lado “tóxico”, mas sim pela ainda mais intangível “confiança”. Havia corridas aos depósitos em Inglaterra, Islândia, Irlanda, resgates multimilionários em França, na Bélgica, na Holanda, na Alemanha.
“Na carteira de ativos do BPN não havia produtos derivados. Só aplicações em créditos, depósitos e outros títulos negociáveis normais”, garante à VISÃO Manuel Meira Fernandes, o administrador financeiro da equipa de Cadilhe.
A nacionalização
Nas reuniões entre Cadilhe e Constâncio, não era a bolha do subprime que causava a visível “crispação”. Eram as referências, diretas de Cadilhe à quota de responsabilidade do regulador no caos que estava à vista de todos nas contas do BPN.
Aqui, os depósitos estavam a crescer, mensalmente, desde que Cadilhe e a sua administração tinham chegado. De setembro para outubro, depois do Lehman e da “inconfidência ” de Constâncio, registou-se a primeira queda, de quase 300 milhões de euros. Mesmo assim, o saldo ainda superava o registado em junho desse ano, e dezembro de 2007.
A queda fez, no entanto, soar o alarme.
Pressionados por Bruxelas, os governantes queriam evitar, a todo o custo, o mínimo sinal de uma “corrida aos depósitos”.
Carlos Costa Pina, na altura secretário de Estado do Tesouro, recorda: “A crise financeira contribuiu para tornar patentes, de forma mais rápida, as fragilidades do BPN. Tive a noção, a partir de julho de 2008, de que a nacionalização poderia ser inevitável. E por isso dei indicações para se começar a preparar essa eventualidade. Deveríamos procurar sempre alternativas, mas sabia que, se elas falhassem, teria que estar tudo pronto para uma decisão imediata. Não haveria, depois, tempo para estudar. Apenas para agir.” No Eurogrupo, reunido de emergência, em Paris, após a falência do Lehman Brothers, havia outros motivos de preocupação: a Irlanda tinha dado uma “garantia integral sem limites” aos seus bancos, atirando o défice para uns impensáveis 32% do PIB.
No dia 2 de novembro, um domingo, estava Miguel Cadilhe em Ponte de Lima, quando recebeu uma chamada de Costa Pina. O BPN seria nacionalizado.
Teixeira dos Santos comunicou a decisão, ao lado de Constâncio, numa conferência de imprensa. Cadilhe demitiu-se. E o buraco do BPN não parou de crescer. Os depósitos, esses, caíram a pique. Mil milhões a menos, em setembro de 2009. Outros mil milhões “voaram” em 2010.
Numa coisa Meira Fernandes e Costa Pina estão de acordo: “Os problemas do BPN eram internos e prévios à falência do Lehman Brothers.
A crise financeira acelerou a sua visibilidade, que se teria verificado com ou sem falência do LB.” (Costa Pina); “A crise do BPN tem uma génese própria: irregularidades e fraudes. Com ou sem Lehman Brothers, teria sempre acontecido.” (Meira Fernandes).
Onde discordam é nas virtudes da solução escolhida pelo Governo. Nacionalizar foi, para Meira Fernandes, “um erro crasso” e uma “mistificação”. “O balanço que faço é péssimo. A liquidez do banco agravou-se, a solvabilidade deixou de existir (o banco ficou tecnicamente falido) e a rentabilidade positiva nunca foi atingida. Quem está a suportar os custos da nacionalização, contrariamente ao então afirmado pelo ministro Teixeira dos Santos, são os contribuintes.” Carlos Costa Pina admite que algo podia ter sido diferente: “No caso do BPN, não tivesse o contexto sido o que foi e talvez a nacionalização pudesse ter sido evitada, encarando-se a falência. Mas infelizmente não se escolhem os momentos em que os sinistros acontecem e, à época, a falência teria tido proporções não verificáveis noutro contexto.”
O risco de tudo se repetir
Ainda havia uma segunda “banqueta” (expressão de um ex-banqueiro) em risco: o BPP. Afirma o ex-governador do Banco de Portugal, António de Sousa: “Nunca foi um banco, nem nunca deveria ter sido. Infelizmente, o Banco de Portugal não pôde evitar dar a licença que é obrigatória por lei.” O BPP era 14 vezes mais pequeno que o BPN, em volume de depósitos. Por isso, em dezembro de 2008, o Governo não teve dúvidas de que seria deixado à sua sorte. O Estado avalizou 450 milhões de euros para um fundo que procurasse reaver parte dos investimentos perdidos por clientes (que garantiam ter entregue as suas poupanças como depósitos e o banco usou como investimentos de risco).
Mas o problema não estava resolvido.
Para mais quando a Zona Euro entrou, definitivamente, na espiral da crise, com os resgates à Grécia e à Irlanda, em 2010. Foram os bancos portugueses que, ficando sem liquidez nos mercados interbancários, e impedidos pelo BCE de aceder aos financiamentos com garantias, fizeram pressão no sentido da intervenção da troika. Estavam inundados de um novo tipo de “ativo tóxico”: os títulos da dívida pública portuguesa (e da grega). Fizeram-no em privado, durante algum tempo, e convenceram o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e o novo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Mas precisaram de pressionar em público para convencer José Sócrates. Judite de Sousa, jornalista da TVI, convidou os banqueiros para uma série de entrevistas. Para sua surpresa, todos aceitaram, no momento. “48 horas depois, o primeiro-ministro estava a pedir ajuda financeira”, contou a jornalista, numa entrevista ao Público. E observou: “Acabei por, com aquelas entrevistas, fazer parte de uma narrativa que foi meticulosamente preparada pelos banqueiros.” Nos 78 mil milhões de euros do “resgate” estava incluída uma fatia de 12 mil milhões para “recapitalizar” a banca nacional, garantindo que entre 9% e 10% do dinheiro investido existisse mesmo nos cofres das instituições cumprindo os rácios de capital definidos após a crise, em Basileia. O nome do mecanismo de ajuda aos bancos é complicado Contingent Convertible Bonds. O acrónimo é surrealista: CoCos.
Usaram este financiamento quatro dos maiores bancos portugueses: o BCP, o BPI, o BANIF e a Caixa. Como contrapartida, os bancos têm de pagar juros de 7%, aceitar administradores nomeados pelo Estado e reduzir para metade os vencimentos dos seus administradores. Têm ainda de encolher.
Despedir trabalhadores, fechar balcões.
E estamos, agora, mais preparados para lidar com uma crise bancária? Nuno Teles duvida: “É difícil avaliar se estamos à beira de uma nova crise, mas é claro o quão pouco mudou na economia internacional desde a crise de 2008. Os mecanismos que deram origem à crise quase não se alteraram.” Meira Fernandes, que se reformou da atividade bancária, ironiza. “Fiz um swap especulativo, na quinta-feira passada, o euromilhões: e perdi.” Mais a sério, este ex-administrador financeiro garante que, hoje, o setor “vive uma crise de confiança”. “Aprendemos pouco.”
Onde estão os protagonistas
À escala europeia pouco passou do papel.
Nos EUA, apesar dos esforços de Paul Volcker, o ex-governador da Fed nomeado por Obama para um conselho de sábios, continua por fazer a separação entre bancos comerciais e bancos de investimento. Nenhuma das regras impostas por Roosevelt, nos anos 30, de contenção da especulação, revogadas ao longo dos anos 90, foi retomada.
O antigo responsável pelo Lehman Brothers ibérico, o espanhol Luís de Guindos, é o ministro da Economia do Governo de Madrid. Dois dos quadros portugueses do gigante falido norte-americano ocupam, hoje, posições sensíveis: João Moreira Rato é o presidente do IGCP, que gere a dívida pública portuguesa. Deixou o Lehman em julho de 2008, quando era diretor-executivo. João Quintanilha, que começou a sua carreira na equipa de derivados do Lehman Brothers, é hoje membro da consultora Stormharbour, escolhida para assessorar o IGCP na análise dos swaps das empresas públicas.
Há banqueiros no banco dos réus, em Portugal.
Pedro Vaz Serra, antigo responsável pelo extinto BPP, confessou, na quarta-feira passada, dia 11, no Tribunal de Coimbra, 12 crimes de burla e outros tantos de falsificação de documentos. Terá ficado com 731 mil euros dos clientes, que usou para fazer obras numa casa apalaçada, em Oliveira do Bairro. “Senti grandes dificuldades financeiras “, justificou-se, perante os juízes. “Foi um ato esporádico”, sublinhou o seu advogado.
Em 2008, era senior adviser do BPP, com uma coluna de opinião no Jornal de Negócios, com o sugestivo título de Ética e Negócios.
Na mesma quarta-feira da semana passada, noutro tribunal, em Lisboa, o conhecido advogado Magalhães e Silva defendeu o seu cliente, Jorge Jardim Gonçalves, fundador do BCP, acusado de crimes de manipulação de mercado por transações em 21 sociedades offshore, criadas pelo BCP, para valorizar as ações do banco, na perspetiva da acusação.
Magalhães e Silva terminou a sua alegação afirmando: “Simplesmente, não é a justiça dos tabloides que se espera deste tribunal.” Nos EUA, nenhum dos responsáveis pela banca foi condenado.
A crise parece ter-se transformado num gigantesco “ativo tóxico”, limpo pelos biliões que os Estados gastaram. E a roleta continua a girar.
GLOSSÁRIO. A NOVILÍNGUA DA CRISE
“Economia” é, na definição de Ambrose Bierce, “adquirir o barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem dinheiro para comprar” (Dicionário do Diabo, ed. Tinta da China). As coisas complicam-se, ainda mais, no nosso século…
- CDO (Collaterized Debt Obligations): Obrigações com garantia real. O nome é engenhoso. Na realidade, trata-se de algo puramente virtual. Um CDO nasce da expetativa de pagamento de um conjunto de dívidas (hipotecas sobre casas, empréstimos sobre carros, cartões de crédito, etc.). Essas dívidas são todas juntas, pelos bancos, e divididas em pedaços. Aqui entram as agências de rating, que dão a cada um dos pedaços uma nota: de AAA a lixo. Depois, os bancos constroem uma pirâmide, em que no vértice estão os ratings mais altos e a base é o “lixo”. O “lixo” paga um retorno maior.
- CDS (Credit Default Swaps): Permutas de risco de crédito. Os CDS podem ser vendidos Over The Counter, ou seja, fora das bolsas. A quem não tem, sequer, qualquer investimento na dívida inicial. O CDS é como um seguro de um carro de alguém que pode ser vendido a outra pessoa que, muito naturalmente, pode apenas querer que o carro se estampe para receber o prémio.
- Short Selling/ Naked Short Selling: Venda curta e venda curta a descoberto sem garantia. O short-selling tem um objetivo: desvalorizar um determinado bem (ação ou título). A versão “a descoberto” só é possível graças aos buracos na legislação. Imagine o leitor tem uma empresa, que vale 100 euros por ação. Alguém pretende comprar ações por metade do preço. Manda vender, sem comprar e o preço vem por aí abaixo. Foi isso que se passou com a cotação de vários bancos, como o Lehman Brothers.
- Swaps: Permutas. Por exemplo: uma taxa de juro fixa por uma variável. Mas os swaps podem ser mais especulativos. Taxas de juro por cocktails de “obrigações”, flutuações cambiais, índices de matérias-primas… Na Refer, enquanto era responsável financeira, Maria Luís Albuquerque contratou um swap, sobre os juros da dívida da empresa, indexado ao desempenho da coroa sueca.
TRÊS PERIGOS QUE SOBREVIVERAM À CRISE
- OS BANCOS DEMASIADO GRANDES Se já eram “demasiado grandes para falir”, os bancos que sobreviveram à crise de 2008 estão ainda maiores. Sobretudo os “tubarões” de Wall Street, que absorveram outros.
- AS ‘ARMAS DE DESTRUIÇÃO MACIÇA’ Há “notícias de um sistema financeiro cheio de ‘ativos tóxicos’ na China”, adianta o economista Nuno Teles. Nenhum país avançou muito na regulação de “derivados”.
- OS BANCOS NA SOMBRA Fundos soberanos, hedge-funds, offshores, continuam a desempenhar um papel financeiro importante, e acrescentam risco ao sistema. “Não podemos ter globalização financeira sem regulação supranacionais”, defende o ex-governante Costa Pina.