Um inquérito iniciado em 2017 e cujas conclusões foram publicadas esta segunda-feira revelou que mais de 30 mil pessoas no Reino Unido receberam, durante as décadas de 1970 e 1980, sangue e produtos sanguíneos infetados Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS), usados para transfusões e tratamentos para distúrbios hemorrágicos, tal como a hemofilia.
Este erro, que aconteceu devido a falhas dos profissionais de saúde e às mudanças de governo no Reino Unido, levou à morte de 3 mil pessoas. Além disso, milhares contraíram hepatites ou foram infetadas com o vírus da SIDA (VIH): o inquérito revela que foram entre 80 e 100 as pessoas infetadas com o VIH através de transfusões e cerca de 26800 as que ficaram com hepatite C.
O relatório indica ainda que, em alguns casos, esses produtos sanguíneos, com origem em doações de prisioneiros norte-americanos e de outros grupos de alto risco, foram utilizados em crianças, que foram infetadas VIH ou hepatite C, e também houve casos de vítimas que “participaram” em ensaios clínicos sem terem dado consentimento ou sequer saberem da existência desse ensaios.
As autoridades britânicas, diz ainda o inquérito, não procuraram alternativas mais seguras e, em julho de 1983, depois de os riscos serem conhecidos, decidiram não suspender a importação de sangue dos EUA.
Brian Langstaff, ex-juiz e presidente do inquérito de 2527 páginas, que foi realizado por ordem da então primeira-ministra Theresa May, indica, citado pela Reuters, que o encombrimento dos casos “não foi um acidente”, tendo sido “mais subtil, mais generalizado e mais arrepiante nas suas implicações” relativamente a qualquer teoria da conspiração.
Langstaff acrescenta ainda que o governo terá escondido a verdade para “salvar a aparência e poupar despesas” e “as infeções ocorreram porque aqueles em posições de poder – médicos, os serviços de sangue e os governos que se sucederam – não colocaram a segurança dos pacientes em primeiro lugar”.
“Será surpreendente para quem ler este relatório que estes eventos possam ter acontecido no Reino Unido”, refere também.
Famílias e sobreviventes pedem justiça há anos
As consequências para as vítimas deste caso foram vastas: o documento indica, por exemplo, que aquelas que contraíram VIH foram, várias vezes, rejeitadas pelas suas comunidades. À mesma agência de notícias, Stephen Lawrence conta que, em 1985, recebeu sangue depois de ser atropelado por um carro da polícia, e que, dois anos depois, foi diagnosticado com VIH e hepatite C. “Acusaram-me de me drogar, de beber, tudo isso”, desabafou.
Esta vítima luta por justiça há anos, assim como os outros sobreviventes e as famílias de quem sofreu diretamente as consequências deste erro, também dos EUA, França, Canadá e outros países. Lawrence não recebeu qualquer indemnização porque os seus registos desapareceram. “Luto com isto há 37 anos”, diz ainda.
Em 2022, o governo pagou de forma provisória 100 mil libras, cerca de 117 mil euros, a 4 mil pessoas infetadas ou que ficaram viúvas.
Numa publicação na sua conta na rede social X, o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, pediu publicamente desculpa a “todas as pessoas afetadas por este escândalo”, em nome do seu governo e dos que o antecederam, lamentando “profundamente” os danos causados às vítimas. “Não tinha de ser assim, Não devia nunca ter sido assim. E em nome deste e de todos os governos desde a década de 1970, lamento profundamente”, escreveu.
“Este falhanço aplica-se a todos os partidos, incluindo o meu. Só há uma palavra: desculpa. E com esse pedido de desculpas reconheço que este sofrimento foi causado por irregularidades, atrasos e falhas sistémicas em toda a linha, agravados por instituições defensivas”, referiu, por seu lado, Keir Starmer, líder da oposição.
“[Isto] desafia realmente a confiança que depositamos nas pessoas para cuidar de nós, para fazer o seu melhor e para nos proteger”, disse, numa declaração aos jornalistas, Clive Smith, presidente da Sociedade de Hemofilia.
O valor das indemnizações pagas às vítimas será conhecido esta terça-feira, mas pode chegar às 10 mil milhões de libras, o que equivale a cerca de 11,7 mil milhões de euros, de acordo com estimativas avançadas pela imprensa britânica. Este inquérito não tem, contudo, competência para recomendar qualquer processo contra os responsáveis.