Orfão de pai e mãe, este menino de rosto simpático foi um dos contemplados com uma bolsa de estudo garantida pelo Projeto Futurando, que está a ser desenvolvido pela Helpo em Maputo. “As pessoas acham que, por estarem em Maputo, estas crianças não têm dificuldades, e não precisam de ajuda. Não sabem como estão enganados”, conta-nos Inês Faustino, responsável pelo projeto, enquanto nos leva pelas largas avenidas da capital moçambicana.
Passámos por várias escolas onde a Helpo aplicou o Futurando, e chegamos à Noroeste 2, onde já estão à espera vários encarregados de educação dos vencedores destas bolsas de estudo que não pagam apenas as propinas dos alunos, mas também garantem fardas (de uso obrigatório), fotocópias, alimentação no bar da escola e ainda os livros escolares e um telefone com um cartão de dados. “Este telefone não pode ser perdido. É para usarem em casa, para verem os vídeos de apoio às várias disciplinas. No final do tempo da bolsa, têm de no-los devolver”, explica Inês de forma pausada e simples a cada encarregado de educação, individualmente. “A sua filha também não pode chumbar – se chumbar, perde o direito à bolsa, sim?”. O pai de Francelina acena e os olhos são só gratidão. Lá em casa são 13 pessoas a viver, das quais sete são crianças. Toda a ajuda é bem-vinda.
No outro canto da sala, Nélcia explica as mesmas coisas em changana, um dos dialetos mais usados em Maputo, à tia de José. A senhora não entende português mas reforça a intenção de ajudar o sobrinho no que puder para que ele não perca a bolsa que conseguiu ganhar. “Esta bolsa é muito importante porque assim não vou pedir dinheiro para provas e para estudar”, diz-nos José, que começa a sentir-se um bocadinho mais à vontade. Conta-nos que as suas disciplinas favoritas são Física, Educação Visual e Inglês, que estuda com o seu “pai que não é de sangue” todos os dias, quando ele chega a casa. Português, Química e História entram para a lista daquelas em que tem mais dificuldade e por isso mesmo está entusiasmado com o sistema de vídeos online que, acredita, o podem ajudar a ter ainda melhores notas.
“Estou preparado para não chumbar”, diz-nos de olhar decidido. Até porque José quer ser empresário, e para isso sabe que tem de ser bastante bom em praticamente todas as disciplinas. “Quero ajudar os meus familiares quando crescer”, revela-nos em jeito de confissão. À falta dos pais, tem nos tios e no primo o exemplo que segue todos os dias e é visível o carinho que a tia lhe devolve, mesmo que não entenda uma palavra do que ele nos diz. “A tia não entende português”, diz-nos enquanto se prepara para voltar para as aulas.
As bolsas do projeto Futurando permitirão a José, a Francelina e a Lágrimas – os três meninos com quem nos cruzámos – sonhar com um futuro melhor pelo menos durante os próximos três anos, e é de sorriso largo que eles saem da sala, numa alegria comedida típica destas crianças.
Numa escola secundária com centenas de alunos a passar, o que mais impressiona é o silêncio. Mesmo quando se lhes pede que esperem todos juntos, as vozes são baixas ou o diálogo inexistente. Passa no rosto de cada aluno e de cada adulto uma espécie de resignação que os impede de ser mais vocais, e que deslumbra porque vem acompanhada de esperança sempre que possível.
Aprender a pensar
“Aquela ali é sempre uma agitação”, conta-nos divertida Esperança, responsável pelo Centro Infantil da Ilha de Moçambique. Aponta para uma das meninas de 3 anos que se esgueirou da sala onde estava a fazer pinturas para ir brincar sozinha para o jardim. Filha de pais que a estimulam permanentemente em casa, conta-nos, destaca-se invariavelmente das outras crianças pela personalidade, pela curiosidade e pela energia. Contrasta com as outras crianças – e sobretudo com as da Escola Secundária Noroeste 2, de que falávamos acima – precisamente porque não conhece o silêncio ou a submissão. Continua a correr divertida pelo pátio enquanto a mandam voltar à sala, como que a desafiar a autoridade das educadoras. No final, um abraço e lá regressa para junto dos seus colegas.
Numa região com a Ilha de Moçambique, em que grande parte das famílias vive com dificuldades económicas, ter os filhos no infantário é um luxo a que ainda poucos se podem dar. A mensalidade para que as crianças possam frequentar a pré-escola entre as 7h e as 12h – os horários mudaram devido à pandemia – inclui dois lanches e o material que usam nas atividades é de 500 meticais (cerca de €7 ao câmbio atual). Muito dinheiro. Para alguns, demasiado.
O projeto pré-escolar nasceu aqui há poucos anos – tão pouco tempo que nem havia educadores habilitados para o fazer – mas a comunidade já percebeu o impacto de conseguir que os filhos tenham contacto com ambientes didáticos e estimulantes antes de irem para a escola primária. É que os que passam pelo pré-escolar chegam à escola muito mais bem preparados para absorver os ensinamentos que lhes vão chegar nos anos seguintes.
Este é mais um dos projetos que está à responsabilidade da Helpo, desde 2015, como sempre em parceria com o Ministério da Educação e os responsáveis locais e no âmbito do Cluster da Cooperação Portuguesa da Iha de Moçambique, e financiado pelo Instituto Camões.
Ao longe vai-se ouvindo as ritmadas palmas que acompanham as vozes das educadoras, que numa animada canção incentivam os alunos de 5 anos a dançar no meio da sala.
Na sala dos 3 anos pinta-se um chupa-chupa gigante no chão, enquanto os auxiliares começam a preparar o lanche da manhã: bebida vegetal, sandes de ovo mexido e muita animação. Antes, uma passagem pelos bidões que se encontram espalhados pelo pátio, para que todos lavem as mãos convenientemente.
Aqui trabalha-se bastante a educação para a nutrição, noutro projeto pioneiro da Helpo. A ideia é explicar às crianças, e consequentemente aos seus pais, a importância de diversificar a alimentação aproveitando as mudanças garantidas pelas estações do ano. O que não é, por norma, mais caro, mas acaba por acontecer por desconhecimento, apenas.
Educar para integrar
Particularmente dedicada a projetos de educação, a Helpo tem-se desdobrado em esforços ao longo de toda a província de Cabo Delgado para garantir mais e melhor acesso às escolas por parte das comunidades em risco. Um dos mais recentes projetos, o Karibu – Bem Vindos, tem como objetivo integrar deslocados internos em Cabo Delgado, e já está em velocidade de cruzeiro, bem no centro do Bairro de Mahate, em Pemba: 7202 crianças entre 12 mil deslocados compõem esta comunidade que encontram no Karibu um espaço seguro e divertido que torna a vida dos mais pequenos um pouco mais fácil.
Depois de anos de conflitos que os obrigaram a abandonar as suas casas, estas pessoas precisam agora de conforto, de segurança, de rotinas que as façam acreditar que podem reconstruir o tudo que perderam quando foram forçadas abandonar a única terra que conheciam. Na escola do Karibu – um projeto feito em parceria com a fundação Wiwanana e a Missão São Carlos Lwanga de Mahate, e financiado pelo Camões, I.P., Galp e Fundação Galp – ainda falta construir algumas salas, casas de banho e outras infra-estruturas. Mas as aulas seguem animadas, dentro ou fora de portas, e nos intervalos há sombras de árvore para descansar, aproveitar para comer doces e brincar.
Espera-se que no próximo ano haja 4 mil crianças integradas no projeto, revela-nos Carlos Almeida, coordenador nacional da Helpo em Moçambique, enquanto nos leva a conhecer o novo diretor da escola, recém-chegado e que nos acena apressado enquanto segue para mais uma reunião.
Vai distribuindo cumprimentos às crianças por quem passa, mas não perde o foco no que veio fazer: acompanhar a evolução do projeto, confirmar que há material suficiente e que tudo corre conforme o previso. Tudo isto com o sorriso aberto de quem sabe que são estes projetos que fazem a diferença na vida daqueles meninos, que enquanto estão na escola “não se metem em problemas, as meninas não engravidam e aprendem uma série de competências que podem fazer toda a diferença nas suas vidas”, explica.
“Por exemplo, os turistas muitas vezes não pensam nisto: quando chegam aqui, se derem dinheiro a estes meninos em qualquer situação – no aeroporto porque se oferecem para levar as malas; na rua porque eles pedem ou porque lhes ensinam alguma coisa – o que vai acontecer é que no dia seguinte eles vão dizer aos irmãos e amigos que é muito melhor faltar à escola para ganhar dinheiro do que vir aprender a ler. É um problema. O impacto é sistémico”, sublinha.
Recorde-se que, em Moçambique, cerca de 1,2 milhões de crianças não vão à escola. Um cenário que impacta, inevitavelmente, o desenvolvimento e a economia de um país com mais de 30 milhões de habitantes.
*A Helpo tem, atualmente e durante o ano todo, a decorrer várias campanhas de angariação de fundos para continuar a apoiar as comunidades moçambicanas. Quem deseje fazê-lo pode optar por fazer um apoio pontual ou mais regular.