“O orçamento que tínhamos para a educação está agora todo a ser usado para trabalharmos no âmbito da luta contra a Covid-19”, começa por esclarecer Carlos Almeida, coordenador da Helpo em Moçambique. “Estamos a fazer máscaras comunitárias com capolanas, ações de capacitação desde meados de março…”
O responsável falou à VISÃO via telefónica, mas desta vez não a partir do hemisfério sul. Carlos Almeida estava na sua já programada visita a Portugal quando a pandemia levou ao cancelamento concertado de voos, fecho de fronteiras e declaração do Estado de Emergência, e tem estado a conduzir os trabalhos à distância, com a ajuda de toda a equipa que entretanto trocou o trabalho nas escolas de Moçambique pelo combate ao novo coronavírus.
Os dados mais recentes mostram que só em África poderão morrer 190 mil pessoas devido à Covid-19, embora estes números sejam particularmente difíceis de apurar. Até agora, os números oficiais apontam para 80 infetados em Moçambique, com nenhuma morte a lamentar. Num país onde a malária é quase sempre apontada como causa de falecimento que não tenha outra explicação evidente, não é difícil imaginar que estes dados possam estar bastante errados. A capacidade de testagem do Estado liderado por Filipe Nyusi é consideravelmente baixa – há semanas em que se fazem apenas 10 testes – mas os relatos vindos do terreno não são trágicos: nos hospitais e centros de saúde, que vivem geralmente enormes carências, todos os protocolos estão a ser duramente seguidos e aplicados; os cidadãos estão a cumprir as determinações do Governo e andam de máscara, genericamente.
Moçambique está, desde 30 de março, em Estado de Emergência, o que significa que não há escolas a funcionar. Uma vez que é a projetos que educação que a Helpo se dedica, maioritariamente, a ONGD decidiu “fazer investimento junto da saúde, sobretudo no que toca a equipamento– os hospitais em Moçambique estão muito mal equipados, como sabe. Comprámos termómetros de infravermelhos, muito material de desgaste e vamos fazer entregas grandes ao nível da água e saneamento (baldes e sabão, por exemplo) nos hospitais”.
Alguns financiadores regulares da ONGD, acrescenta ainda o responsável, “acederam também a converter os apoios que geralmente doam para a área da educação neste projeto específico, como é o caso da Galp”, exemplifica.
A Helpo continua assim presente nas regiões onde já costuma trabalhar – Nampula, Cabo Delgado e Manica – e onde estava, desde há um ano, a trabalhar na recuperação das comunidades afetadas pelos ciclones Idai (centro) e Kenneth (norte).
“O preço das máscaras disparou, foi uma coisa mesmo terrível. As pessoas estão a passar mal”, salienta este antigo professor que há mais de 10 anos trocou Portugal por Moçambique. “Quem vive na zona dos ciclones, está ainda pior”, lamenta.
Recorde-se que a Helpo integra um dos consórcios que ganhou financiamento do Instituto Camões para continuar a trabalhar na recuperação de Moçambique após os ciclones que devastaram o país no ano passado. Nesse sentido, a ONG garante que está a manter o projeto financiado pela organização portuguesa, em Sussudenga, ao mesmo tempo que trabalha no reforço de equipamento e ações de formação junto das comunidades.
“Neste momento a maior dificuldade é olhar para um cenário em que está tudo em branco”, admite à VISÃO. Em termos de educação, por exemplo, “em Portugal queixamo-nos de que há uma percentagem mais elevada de crianças que não tem acesso à internet”. No entanto, praticamente todos os alunos têm acesso à telescola. Em Moçambique “também há telescola, mas praticamente ninguém te acesso. Em Maputo, sei de vários alunos que estão a ter acompanhamento escolar via whatsapp. Mas isso é em Maputo. Acreditamos que este seja um ano perdido em termos de educação. E quando as escolas reabrirem, vai ser uma complicação. Não sabemos nada”.
A pandemia de Covid-19 começou a impactar o país precisamente um ano após o ciclone Idai, numa altura em que grande parte da população ainda estava a tentar garantir uma primeira colheita após aquela que foi a maior catástrofe natural da História do país.
Com os preços de alimentos, materiais de construção e agora os materiais de saúde a disparar, ONG e comunidades têm-se desdobrado para tentar suprir as necessidades mais prementes. No entanto, os dados recolhidos pela Rede dos Sistemas de Aviso Prévio contra a Fome (FEWS NET, na sigla em inglês) continuam a mostrar uma estagnação naquilo que deverão continuar a ser as faltas em várias – demasiadas – regiões do país.
Um relatório da mesma organização, datado do início de março, revela que o preço dos grãos de milho, base da alimentação moçambicana, estava 25% a 75% acima dos preços do ano passado, e 25% a 55% acima da média devido à falta de oferta do mercado. “O preço anormalmente alto” de alimentos de primeira necessidade “vai diminuir o poder de compra entre as famílias pobres, levando a insegurança alimentar aguda a áreas onde as famílias dependem fortemente dos mercados”, concluía o documento.
Financiamento posto em causa
Apesar de ter refocado a sua atividade, a Helpo depara-se agora com um problema que deverá agravar-se a longo dos próximos meses: a redução das doações, que permitem à ONG trabalhar projeto a projeto. “Uma coisa que nos está a causar um grande transtorno é o facto de a nossa campanha pela consignação de 0,5% do IRS à Helpo estar a passar ao lado”, uma vez que as pessoas estão completamente focadas na pandemia. No ano passado, só a alocação de parte do seu IRS a esta ONG rendeu à Helpo mais de 152 mil euros. O restante valor chega, por norma, via apadrinhamento de crianças. “Sabemos que vamos ter muitas desistências”, devido à crise económica que se adivinha e “estamos um bocadinho preocupados”, sublinha Carlos Almeida apelando à generosidade dos portugueses.
Enquanto pensa em estratégias para se manter no terreno e gere operações à distância de um continente, Carlos não deixa de trabalhar. Assim, a Helpo em Portugal decidiu associar-se à Junta de Freguesia de Cascais e do Estoril e está a ajudar na entrega diária de refeições doadas às famílias carenciadas da região. “Se não podemos ajudar diretamente, ajudamos quem ajuda”, resume em jeito de justificação.
Para já, ainda não há planos para regressar a Moçambique, uma vez que é preciso que também lá termine o Estado de Emergência, e que os voos entre Lisboa e Maputo ganhem alguma regularidade que lhe permitam planear com serenidade as visitas à família. No entanto, o trabalho nunca abranda, na mesma medida em que as necessidades não dão tréguas.
*Notícia atualizada no dia 11 de maio com informação sobre a alocação das verbas dos doadores regulares da HELPO aos projetos relacionados com a Covid-19.