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VISÃO História – Nas bancas
Na noite de 2 de abril de 1917, uma mulher russa de 52 anos chamada Anna Ulianova entreabria a porta da sua casa de Petrogrado – o nome de São Petersburgo entre 1914 e 1924 – para receber um telegrama proveniente de Zurique. O remetente era um irmão seu, líder socialista revolucionário exilado na Suíça, e o papelinho entregue pelo boletineiro informava-a de que o conspirador tencionava regressar no dia 12 desse mês à então capital russa. Anna ficou surpreendida.
Como tencionaria ele alcançar o seu destino a salvo, tratando-se de um exilado político perseguido pela Okhrana, a omnipresente polícia secreta instituída décadas atrás pelo czar Alexandre III e que continuava a movimentar-se na sombra, apesar de ter sido formalmente dissolvida no mês anterior, por ocasião da Revolução de Fevereiro que derrubara o regime czarista? E de que forma conseguiria ele viajar através de uma Europa transformada em campo de batalha da I Guerra Mundial?
Anna ignorava que o irmão era, na conjuntura, protegido por um dos homens mais poderosos do mundo, por sinal o primeiro dos inimigos externos do Estado russo: Guilherme II, imperador alemão e formalmente tão Kaiser (César) como o tinham sido os czares russos, uns e outros autoproclamados herdeiros da tradição imperial da velha Roma. O Império Alemão e os seus aliados Austro-Húngaro e Otomano estavam envolvidos em guerra com a Rússia, no quadro desse primeiro conflito mundial (1914–1918), em que os czares tinham alinhado ao lado da França e da Inglaterra, não por amor aos regimes das democracias ocidentais, mas na esperança de, na partilha dos despojos otomanos, virem a obter Constantinopla e o domínio dos estreitos que ligam o mar Negro ao Mediterrâneo.
Anna Ulianova desconhecia a existência do acordo entre o Kaiser e o irmão, mas recordava-se bem das feições de Vladimir, que não via há bastante tempo mas cujo rosto de maçãs salientes e barba talhada em bico lhe surgia agora claramente delineado na memória. O nome completo do irmão era Vladimir Ilitch Ulianov, mas tornara-se conhecido entre os seus camaradas do Partido Bolchevique simplesmente por Lenine.
Profissão: revolucionário
Vladimir nascera em 1870 em Simbirsk, no seio de uma família de conservadores liberais desafogados que vivia sob vigilância da Okhrana. O pai, Ilia Ulianov, de origem mongol, era um cristão ortodoxo descendente de servos que estudara Matemática e Física e se tornara inspetor e diretor escolar. A mãe, Maria Alexandrovna Blank, uma mulher educada e conhecedora de várias línguas, filha de uma sueca e de um judeu convertido ao cristianismo. Variadas componentes humanas do império encontravam-se pois misturadas nos genes do futuro mentor da revolução que abalou o mundo.
Anna, que conhecemos no início desta história, foi a primeira filha do casal. Era seis anos mais velha do que Vladimir, e quatro do que Alexandre, o irmão do meio, condenado à morte em 1887 por envolvimento numa tentativa de assassínio do czar Alexandre III, tragédia que exerceria profunda influência no espírito de Lenine. Nasceriam ainda mais três filhos: Olga, Dmitri e Maria.
O pai morrera pouco antes do enforcamento do irmão, quando Vladimir tinha 16 anos e estava em vias de se tornar um líder estudantil contestatário da Universidade de Kazan, enveredando pelo estudo do marxismo e acabando por conceber uma aplicação prática pessoal (o marxismo-leninismo) das teorias do filósofo alemão falecido em 1883. A mãe, receosa do que este filho viesse a ter o mesmo destino do mais velho, insistiu em que a família se mudasse para Samara, na esperança de que Vladimir abandonasse a luta política. Em vão.
Mesmo assim, movendo influências, Maria Alexandrovna conseguiu que Vladimir se apresentasse como aluno externo aos exames de Direito da Universidade de São Petersburgo, que ele ultrapassou com sucesso, o que lhe permitiu trabalhar algum tempo como funcionário superior, primeiro em Samara e depois na capital. Mas não tardou a retomar os estudos marxistas e a frequência de reuniões clandestinas, numa das quais conheceu a jovem professora marxista Nadia Krupskaya, com quem se casaria mais tarde, durante o exílio de ambos na Sibéria. Entretanto, viajou por Paris, onde pesquisou documentos sobre a Comuna de 1871 e se encontrou com Paul Lafargue, genro de Marx, e Berlim, onde conheceu o ativista marxista Wilhelm Liebknecht – com uma estada pelo meio numa estância de repouso suíça, financiada pela mãe.
Em dezembro de 1895, Vladimir foi preso, tendo pouco depois a mesma sorte Nadia detida pela Okhrana durante as greves de 1896 e condenada a seis meses de prisão e três anos de deportação na Sibéria, onde já estava Vladimir. Concluída a pena e casados no degredo, Vladimir e Nadia regressaram à Rússia europeia, instalando-se em Pskov, onde fundaram o jornal revolucionário Iskra (Centelha) e permaneceram até 1900, seguindo-se um novo exílio – desta vez na Suíça, mas com passagens por Inglaterra e pela Alemanha, sempre com fins conspirativos, desde participações em congressos do movimento operário a pesquisas em bibliotecas.
O radicalismo de Lenine (nome já então adotado por Vladimir) fazia afastar alguns camaradas de luta, mas nem por isso ele alterava as suas teses. Em Zurique viveu a partir de 1905 uma vida discreta, com Nadia e com a mãe, mas durante uma deslocação a Paris conheceu a revolucionária francesa Inès Armand, com quem manteve um prolongado romance. Isso não impediu que Nadia se mantivesse até ao fim como a sua companheira «oficial» e uma das suas maiores colaboradoras na área da pedagogia.
Entretanto, em Zurique
No dia 2 de abril de 1917, à mesma hora a que, em São Petersburgo, Anna Ulianova lia o telegrama de Lenine, em Zurique, este comunicava aos camaradas com ele ali exilados que se encontrava na posse de um fundo de mais de mil francos suíços destinado a custear as despesas da deslocação do grupo até Petrogrado, onde no mês anterior estalara a revolução que enviara Nicolau II para o exílio, instituíra a Duma e colocara em funções um Governo Provisório de compromisso entre os interesses dos latifundiários e os de uma certa esquerda urbana e pequeno-burguesa. No entanto, esse Executivo partilhava o poder com o soviete da capital, surgido na sequência da revolução falhada de 1905 inspirado nos ideais da Comuna de Paris de 1871 e que vivia um segundo fôlego após a «refundação», como Soviete de Petrogrado dos Deputados de Operários e Soldados, em março anterior.
O objetivo de Lenine, então em vésperas de completar 47 anos, era desencadear uma revolução na revolução, derrubando o Governo Provisório, atribuindo todo o poder aos sovietes e desconvocando as agendadas eleições para a Assembleia Constituinte. Entendia que só uma ditadura do proletariado, exercida através da vanguarda «esclarecida» e ativa do Partido Bolchevique, seria capaz de derrotar as desigualdades sociais e a miséria que grassavam na Rússia.
Quando comunicou esta decisão aos camaradas de exílio, ficara para trás uma complicada teia de contactos com as autoridades alemãs, apostadas em que o revolucionário e o seu grupo organizassem ações de sabotagem política na retaguarda russa. Lenine mal conseguia dormir desde que a revolução «branca» estalara em Petrogrado, revelaria mais tarde Nadia. Antes de conseguir o entendimento com os alemães, durante a noite traçava, no pequeno apartamento, os projetos mais fantásticos, desde a falsificação de um passaporte sueco até à forma de obter o aval das autoridades helvéticas e germânicas para empreender a viagem até à Rússia. Mas era também necessário que os camaradas de Petrogrado estivessem dispostos a acolhê-lo como líder, pois de outra forma não concebia a sua posição no processo. E havia que encontrar maneira de armar o proletariado da capital russa.
Sucediam-se assim as reuniões dos revolucionários exilados na Suíça. Alguns ostentavam uma flor vermelha na lapela. À noite, sem sono, Lenine continuava a falar para si próprio, em voz alta, numa espécie de delírio noturno. Nadia brincava: «Não te deixes adormecer, porque terias logo pesadelos e gritarias a chamar canalhas aos mencheviques; o teu segredo era logo descoberto…» Vivia-se o quarto ano da guerra.
A França, a Inglaterra e a Rússia lutavam contra os Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano. A anulação da Rússia deixaria a Alemanha apenas a braços com a frente ocidental. Daí o potencial interesse de Berlim em que os inimigos do regime de Petrogrado atuassem como quinta coluna, e era esse trunfo que Lenine teria de jogar. Mas como chegar – ou como chegou? – à fala com o governo do Kaiser?
A carruagem selada
Um revolucionário socialista suíço, Fritz Platten, entra aqui em cena como a personagem que fazia falta ao enredo. Participara dois anos antes na conferência de Zimmerwald, da qual saíra a tese da união dos socialistas internacionalistas e pacifistas contra os governos de «união sagrada», mentores das políticas de guerra. Platten entrou em contacto com os exilados russos e serviu de ponte entre eles e os meios revolucionários helvéticos, e através destas com os homólogos alemães (além de franceses, polacos e de outras nacionalidade).
Por estas portas travessas foi obtida a cobertura, não taxativamente expressa, do Governo germânico. Finalmente, seria assinado em Berna, em 7 de abril de 1917, um documento pelo qual as várias forças e correntes interessadas deixavam expressas as condições da travessia, pelos exilados russos, do território alemão, com a estrita finalidade de estes reforçarem junto da opinião pública do seu país as tendências contra a guerra, aliás cada vez mais impopular após as derrotas sofridas na frente austríaca.
O fenómeno da guerra esteve, assim, na origem imediata das revoluções russas, tanto na de 1905 como na de 1917. No primeiro caso, o desastroso conflito com o Japão, em que pela primeira vez na era moderna um Estado oriental derrotou uma potência ocidental; no segundo, a hecatombe que atormentou o Velho Mundo e agravou as dificuldades da Rússia, onde o fosso entre ricos e pobres era abissal.
Dois dias depois da assinatura do compromisso, a 9 de abril, Lenine almoçou com os camaradas no restaurante Zeringerhof, em Zurique. Era a despedida do exílio, pouco antes do embarque numa carruagem ferroviária especial que, atravessando a Alemanha, os transportaria, sob proteção indireta do Kaiser, até ao longínquo destino russo. Concluída a refeição, dirigiram-se para a Hauptbanhoff, a estação central, e, pouco depois das 3 da tarde, a locomotiva apitava e o comboio partia, com 32 revolucionários a bordo.
O grupo viajava num carruagem reservada, que ficou conhecida como «carruagem selada da revolução». Das quatro portas, só uma podia ser aberta e ninguém era autorizado a sair nem a entrar. Após uma viagem longa mas sem grande história, a carruagem, que ia sendo atrelada a este ou àquele comboio segundo as exigências do percurso, atingiu no dia 11 o mar Báltico.
O geograficamente lógico teria sido a composição partida de Zurique rumar diretamente a leste, mas nessa zona, que era a da frente de guerra, todas as comunicações tinham sido interrompidas. Por outro lado, o «desvio» pela Escadinávia evitaria uma entrada precoce em território russo num local ainda muito afastado de Petrogrado. A «carruagem selada» subiu, atravessou a Suécia neutral e desceu depois a Finlândia, cuja fronteira leste passa muito perto de Petrogrado (ver mapa).
O grupo chegaria à então capital russa na noite de 16, uma semana depois da partida. Afinal, Lenine não pôde ir visitar logo a irmã Anna. Na estação, uma multidão de operários, soldados e marinheiros vitoriava o líder revolucionário. Um quadro bastante posterior, já da escola do realismo socialista, pinta Estaline atrás dele no momento do desembarque da carruagem, como se o então «paizinho dos povos» tivesse feito parte dessa viagem. Da gare, Lenine seria transportado, num carro blindado, até ao local onde o soviete de Petrogrado lhe dedicaria uma receção, na antiga sala de audiências do czar.
De fevereiro a outubro
Enquanto durava a viagem, a história continuava a marchar em passos largos na capital da Rússia. Pouco tempo antes, em 8 de março, uma manifestação de mulheres redundaria num enorme motim. A 17, instaurava-se a República. Nicolau II abdicava e partia para o exílio interno (antes de ser barbaramente assassinado com a família). Era o fim de meio milénio de monarquia. A 27, uma multidão de operários, soldados e marinheiros invadia o Palácio de Táuride, onde se reunia a Duma. À tarde, em salas separadas, seriam constituídos os órgãos executivos doravante rivais: Governo Provisório, integrado por deputados moderados da Duma, e Soviete, composto por representantes dos operários, soldados e marinheiros de várias correntes de esquerda. A tensão entre as duas forças caracterizava a situação política no momento da chegada de Lenine.
A pressão popular contra a guerra, entretanto, continuava, levando à renúncia o ministro da pasta, Alexandre Guchkov, e à sua substituição por Alexandre Kerenski, o único socialista (moderado) do Executivo, e doravante a sua figura predominante. Em julho, os bolcheviques, que contavam já com mais de 200 mil aderentes, representavam uma força séria no xadrez político, e o poder real era efetivamente partilhado entre eles e o Governo Provisório.
Quando se confirmou que a ofensiva desencadeada pelo exército russo contra os austríacos, na frente da guerra europeia, se saldara por um desastre, muitos dos apoiantes do partido de Lenine foram de opinião que chegara a hora de lançar o assalto ao poder. E eis que, a 17 de julho, estalou em Petrogrado uma revolta que redundaria, porém, num insucesso, por falta de coordenação. Este primeiro golpe, falhado, ficaria conhecido na historiografia soviética e marxista em geral por «Jornadas de Julho».
E, enquanto Trotski e outros líderes revolucionários eram presos e Lenine se via obrigado a procurar refúgio na Finlândia para não ter a mesma sorte, o chefe do Governo Provisório, príncipe Lvov, ultrapassado pelos acontecimentos, cedia o lugar a Kerenski.
Embora adversário dos bolcheviques, Kerenski não deixava de ser socialista, o que acirrava contra ele a animosidade dos setores mais conservadores da sociedade, deixando-o entre dois fogos. Quem viveu o processo revolucionário português de 1974-75 estará recordado de que o secretário de estado americano, Henry Kissinger, chamava a Mário Soares «o Kerenski português», paralelismo que não deixa de ter certa pertinência.
No início de setembro, um general conservador, Kornilov, quis intervir no processo, e fez marchar sobre Petrogrado as tropas que tinha sob seu comando. Sem capacidade para resistir, Kerenski lançou um apelo aos operários do soviete no sentido de defender a cidade, o que estes se dispuseram a fazer negociando em troca a libertação de Trotski. Contudo, este pedido de auxílio do chefe do Executivo equivaleu a dar um aval aos bolchevistas, já que lhes era reconhecido um papel de importância fundamental. Por outras palavras, o golpe militar de Kornilov falhou, mas Kerenski, ao revelar-se incapaz de resolver a situação, pôs em evidência a sua própria fraqueza.
Lenine foi então autorizado a regressar da Finlândia. Os sovietes das principais cidades estavam com ele e a maioria dos dirigentes do Partido Bolchevique era, tal como o líder, da opinião de que uma nova tentativa de tomada do poder deveria ser lançada quanto antes.
Alvo: o Palácio de Inverno
O Partido Bolchevique e o Soviete de Petrogrado, que Lenine encabeçava e dirigia desde que os seus membros ali se tinham tornado maioritários, eram cada vez mais a única força organizada. Finalmente, a 7 de novembro (23 de outubro pelo calendário russo), os bolcheviques, comandados no terreno por Trotski, tomaram de assalto, e sem depararem com grande resistência, o Palácio de Inverno, sede do Governo Provisório, bem como todos os pontos-chave de Petrogrado. O sinal para o início das operações fora dado por um disparo de canhão do cruzador Aurora, ancorado no rio Neva, cuja tripulação, sublevando-se, aderira à causa bolchevique.
Todo este quadro dinâmico, imortalizado uma dúzia de anos depois, de maneira idealizada, pelo filme Outubro, de Sergei Eisenstein, culminava uma semana frenética de reuniões, ordens e contraordens que o jornalista comunista americano John Reed registaria no seu famoso livro Dez Dias que Abalaram o Mundo. Kerenski, abandonado pelos seus apoiantes, viu-se obrigado a fugir da cidade, disfarçado (para mais tarde tentar retomar a luta, durante os anos confusos da guerra civil), e na noite desse mesmo dia 7 os sovietes da Rússia, reunidos em congresso, confiavam o poder a um Conselho dos Comissários do Povo (ministros) chefiado por Lenine.
Nessa reunião, em que os bolcheviques ocupavam 390 das 649 cadeiras, o líder incontestado da revolução e do novo regime fez aprovar dois decretos que encontraram bom acolhimento junto da maioria da população russa, que não hesitou por isso em conceder-lhe o seu apoio durante os meses turbulentos que estavam para vir. O primeiro dizia respeito à paz e estipulava a cessação imediata das hostilidades com os impérios Alemão e Austro-Húngaro, conforme ficara indiretamente acordado com o Kaiser germânico quando este facilitou o regresso de Lenine à Rússia; nesse sentido, em breve foram dadas instruções ao comandante do exército com vista à abertura de conversações conducentes a um armistício, esforços que se traduziriam na assinatura, em março de 1917, do Tratado de Brest-Litovsk, definindo as condições de uma paz separada com os impérios centrais, que a Inglaterra, a França e os restantes aliados da Rússia czarista na Grande Guerra entenderam como uma traição.
O segundo decreto relacionava-se com a posse da terra e estipulava que a propriedade fundiária fosse abolida sem qualquer espécie de indemnizações. Os pequenos mujiques receberiam assim um milhão e meio de hectares até então na posse dos latifundiários, mas esse era apenas o primeiro capítulo de um processos pontuado de avanços e recuos durante o qual o Estado, substituindo-se aos grandes proprietários, viria a cometer arbitrariedades e atrocidades que atingiriam o auge no início da década de 1930.
Sem o fanatismo e a total entrega do agitador profissional chamado Vladimir Ilitch Ulianov e que o mundo conhece por Lenine, a revolução russa teria, sem dúvida, sido diferente. Quer como ativista quer como teórico do marxismo, foi ele que definiu as linhas-mestras do regime soviético. Raramente convergem numa mesma figura os dois tipos, normalmente antagónicos, do erudito e do homem de ação. Pense-se o que se pensar desta sucessão de lances teatrais, o acontecimento que os anais guardariam sob a designação de Revolução de Outubro constituiu-se numa das charneiras da História da Humanidade, talvez não tão determinante como a Revolução Francesa de 1789 mas com reflexos duradouros que hoje continuam a fazer-se sentir.
A assinatura da paz separada com a Alemanha, a guerra civil, a instalação do poder bolchevique, a mudança da capital para Moscovo, a fundação da União Soviética (URSS) e do seu Partido Comunista, a morte de Lenine em 1924, as lutas pelo poder, o advento de Estaline e a queda em desgraça de Trotski (um dos conspiradores de outubro e o mais destacado intelectual do grupo) forneceriam matéria para muitas outras histórias.
Durante as sete décadas que durou, o regime soviético suscitou adesões apaixonadas e ódios exacerbados. De tal forma que ainda hoje se torna difícil falar serenamente da URSS, com o seu indubitável nivelamento social e o clima repressivo e contrário ao livre florescimento da personalidade em que se desenvolveu. Referência para milhões de trabalhadores, organizados em partidos comunistas nacionais fundados à imagem e semelhança do soviético, a URSS liderou durante décadas sem qualquer contestação o movimento comunista internacional, vindo o seu predomínio apenas a ser assombrado pela emergência da China maoísta, no pós-II Guerra Mundial. Atravessaria o momento mais difícil por altura da invasão hitleriana de 1941-45, mas entre o final dessa «Grande Guerra Patriótica» e a sua dissolução, em 1989-91, partilharia com os Estados Unidos da América o estatuto de superpotência mundial. O mútuo receio das armas nucleares evitou o pior. A esperança nos «amanhãs que cantam» (como rezava uma canção comunista francesa dos anos 30) ia resistindo e persistindo através da espuma dos dias.
Há de vir o tempo em que poderá ser escrita a história desapaixonada de um movimento complexo que, pesem as suas múltiplos sombras negras – vigilância policial, prática censória, condicionamento da mente e do gosto, perseguições, prisões arbitrárias, processos iníquos, crimes políticos, rios de sangue derramado –, conseguiu manter viva no mundo, por longos anos, a chama da justiça social, do anticolonialismo e de um modelo socioeconómico anticapitalista. Por enquanto, aguardando-se o advento de uma verdadeira terceira via emancipadora, o amor e o ódio ainda pesam nos pratos da balança de uma avaliação que permanece apaixonada.
Quanto a Anna Ulianova, com quem travámos conhecimento no início desta história recebendo um telegrama do irmão exilado, morreria em 1935, não sem antes ter endereçado por sua vez uma carta ao então todo-poderoso Estaline, revelando-lhe que o seu avô materno (e de Lenine) era judeu. Tentava assim induzir o ditador a rever a sua política antissemita, traduzida na criação de zonas de fixações de judeus na Rússia. Em vão. O «paizinho dos povos» ordenou-lhe que mantivesse essa informação secreta. O corpo embalsamado de Lenine, esse repousava já, desde 1930, no seu imponente mausoléu de mármore, labradorite, pórfiro e granito, junto da muralha oriental do Kremlin, na Praça Vermelha de Moscovo.