Apesar de o rosto ainda lhe denunciar a tonalidade de férias recentes, Jean-Claude Junker parecia um homem visivelmente agastado, quando, em meados de setembro, surgiu perante as câmaras, para proferir o seu discurso anual sobre o Estado da União. Notava-se-lhe o incómodo causado pelas ressacas dos atentados terroristas e da decisão do eleitorado britânico em sair da União, quando advertiu para o ressurgimento dos nacionalismos no Velho Continente, alertando para o “populismo galopante” a alastrar pela outrora tranquila e tolerante paisagem política europeia.
Como os ratos na história do Flautista de Hamelin, o eleitorado europeu deixa-se crescentemente seduzir pelo discurso fácil de demagogos de extrema-direita, cujo discurso se centra num punhado de eixos simplistas: “Os imigrantes roubam os nossos postos de trabalho”; “os muçulmanos ameaçam a nossa segurança e cultura”; “o politicamente correto amordaça a nossa liberdade de expressão”; “as elites desgovernam-nos e ‘enchem-se’ à nossa custa”.
Vivemos tempos de crise. Ainda sentimos o abalo da crise financeira de 2008; a dívida soberana mantém-se como um garrote à volta do nosso pescoço, e assustamo-nos perante a crise dos refugiados. Todas essas crises são exacerbadas por outra: a crise de valores. Deixámos de acreditar no sistema democrático representativo e nas suas instituições europeias.
O terreno é fértil para semear medos e a ansiedade face ao futuro. Pouco propício à superestrutura de ideias racionais que marcaram a civilização europeia nos últimos três séculos. Andamos desiludidos e zangados com a política habitual. A nossa raiva dirige-se contra “eles” – a elite distante –, sejam eles os membros dos governos, os líderes dos partidos convencionais, os banqueiros, os burocratas de Bruxelas ou os comentadores. Cada vez mais ouvimo-nos dizer que “devia estar tudo preso”. E só nos apetece é “partir isto tudo”.
O inacreditável acontece
Já estivemos assim no período entre as Grandes Guerras do século passado, no final da década de 20 e no início da seguinte, durante a Grande Depressão. Encontramo-nos novamente maduros para cair nas mãos de atores políticos demagógicos, que saibam comunicar eficazmente e que falem em nome do povo. A verdade é que eles andam aí e já obtiveram ganhos estrondosos. E isto nem sequer é uma previsão exagerada para um futuro próximo. Acontece agora mesmo e não se circunscreve ao território europeu.
Num livro recente, Benjamin Moffitt, investigador da universidade de Estocolmo, chama-lhe a Ascensão Global do Populismo. E nessa ascensão, 2016 foi um ano muito profícuo. Para os padrões ocidentais do pós-Segunda Guerra Mundial, aconteceram coisas inacreditáveis, que, julgámos, não era suposto terem ocorrido.
Em maio, na Áustria, Norbert Hofer, candidato presidencial do Partido da Liberdade (FPÖ) ficou a 31 mil votos de se tornar o primeiro Presidente de extrema-direita eleito na Europa ocidental depois de 1945. A votação foi impugnada e será
repetida a 4 de dezembro. E ele tem boas hipóteses de vencer. O que, a acontecer, abrirá as portas da chefia do governo a Heinz-Christian Strache, líder do FPÖ.
Aconteceu também na Alemanha. Numa sucessão de eleições regionais, em que o populismo radical da Alternativa para a Alemanha (AfD) chegou a ficar à frente dos democratas-cristãos de Angela Merkel, na região onde a chanceler nasceu. O próximo passo é a entrada em força do partido liderado por Frauke Petry no Bundestag, o Parlamento federal, nas legislativas do próximo ano.
E aconteceu, também, no Reino Unido. Em junho, contra as expectativas da maioria dos analistas e contrariando os estudos de opinião, 52% dos britânicos, seguindo as propostas dos populistas do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP), votaram a favor da saída do Reino Unido da União Europeia. Isso, apesar dos avisos de que essa opção seria um suicídio económico.
Está a acontecer agora, nos Estados Unidos, debaixo dos nossos olhos incrédulos: Donald Trump, um candidato tido como de comédia, conseguiu a proeza de chegar ao final da corrida presidencial e, contra todas as probabilidades, incluindo as das sondagens, chegar, ver e vencer.
As reações do establishment político tradicional têm sido pouco mais do que suspensão, choque, tristeza ou um simples abanar de cabeça. Quanto muito empurram-se as culpas para um eleitorado “ignorante” e “apático”.
Povo real
O populismo de extrema-direita nega o pluralismo das nossas sociedades contemporâneas e arvora-se como único representante do “povo real” ou porta-voz da “maioria silenciosa”. Chega a transmitir a ideia de ilegitimidade dos defensores do pluralismo, da abertura e da tolerância. Na Áustria, por exemplo, o candidato presidencial do FPÖ atacou o seu antagonista, Alexander van der Bellen, candidato dos Verdes, acusando-o de ser apoiado pela alta sociedade: “Eu tenho o povo atrás de mim.”
Por seu lado, o então líder do UKIP, Nigel Farage declarou o resultado do referendo britânico como “uma vitória do povo real”. Assim, considerou 48% dos votantes como “irreais”, escreveu Jan-Werner Müller, professor em Pinceton, no The New York Review of Books.
“Uma vez que o ‘povo real’ é um mito conjurado pelos populistas, os resultados eleitorais ou sondagens de opinião podem ser sempre questionados em nome do povo”, sugere esse politólogo austríaco. “Se o candidato populista perder, não é por não ser tão popular como esperava; mas porque o ‘povo real’ ainda não se expressou.” Não é por acaso que os populistas são tão lestos a elaborar teorias da conspiração ou a contestar resultados eleitorais.
“Os populistas são tendencialmente perigosos para a democracia”, comentou o já citado Jan-Werner Müller, numa entrevista à revista Der Spiegel. E isso não necessariamente pelas suas posições – as políticas corretas de imigração ou de integração europeia são, como aliás todas, discutíveis. Mas mais, segundo o politólogo, porque os populistas se reclamam como os únicos representantes do ‘povo real’, diabolizando os adversários e todos os cidadãos que não os apoiam. “Isso torna-os inelegíveis para um democrata.”
O ‘‘Zeitgeist populista’’
Tido durante décadas como um fenómeno marginal do establishment político, o populismo está furiosamente pujante. Come à mesa dos grandes partidos tradicionais (muitas vezes sem maneiras, diga-se) e condiciona-lhes as opções políticas, sobretudo ao centro-direita e direita conservadora, que muitas vezes adotam algumas das suas propostas com receio de perderem votos.
Agora já fazem parte da paisagem política e não seria exagero dizer que fazem parte do sistema
que tanto vilipendiam. Tornou-se respeitável, cobrindo-se com um manto de normalidade. Até ascendeu à governação em alguns países da União Europeia.
Governa a Polónia sob a batuta de Jaroslav Kaczynski, do partido Lei e Justiça (PiS), que também fez eleger um Presidente. Desde que subiu ao poder que o governo PiS tem vindo a tentar limitar o Estado de Direito. Passando por cima de decisões do Tribunal Constitucional, diminuindo os poderes dos seus juízes. Retira direitos das mulheres e às minorias. Mantém longe refugiados e migrantes.
A União Europeia já ameaçou este Estado-membro com sanções ao abrigo do tratado de Lisboa. Mas uma decisão nesse sentido é praticamente impossível. Precisa de unanimidade no Conselho Europeu (cimeira de chefes de Estado e de Governo) e essa será difícil, enquanto a Hungria for governada por Viktor Orban, outro radical de direita populista e amigo pessoal de Kaczynski.
O politólogo holandês Cas Mudde fala num “Zeitgeist populista”, ao passo que o seu colega búlgaro Ivan Krastev em “vaga populista”.
No final da primavera de 2015, foi criado em Bruxelas, no Parlamento Europeu, um novo grupo parlamentar intitulado “Europa das Nações e da Liberdade”. Liderado por Marine Le Pen, da Frente Nacional francesa, integra, além desta, o FPÖ, da Áustria, o Partido da Liberdade Holandês e, entretanto, a AfD alemã e também eurodeputados belgas, italianos, polacos e romenos.
A pertença a um grupo parlamentar do Parlamento Europeu traz bastantes benefícios para os partidos-membros, além de proporcionar um palco adicional para a atuação dos seus dirigentes.
Por exemplo ao nível organizativo, os populistas passaram a ter um estatuto de grupo parlamentar, o que lhe dá direito a receber do Parlamento apoio administrativo e de secretariado. Outra vantagem é a de a sua presidente, Marine Le Pen, poder participar nas reuniões de líderes parlamentares. Por outro lado, o fluxo de informações é mais facilmente canalizado para o grupo do que individualmente para cada um dos seus 39 membros. E há também vantagens financeiras. Segundo os cálculos do portal de informação europeia Euroactiv, só no seu primeiro ano de atividade, o grupo europeu presidido pela líder da Frente Nacional francesa terá custado 13 milhões de euros ao erário público da União.
Receita com dez ingredientes
Ivan Krastev escreveu, há alguns anos, que os populistas de extrema-direita têm uma fórmula mágica para a sua “versão eleitoral do cocktail Molotov”. E essa compõe-se de dez ingredientes: irritação genuína, ódio às elites, políticas imprecisas, igualitarismo económico, conservadorismo cultural, radicalismo compassivo, euroceticismo e anticapitalismo calculados, nacionalismo declarado, xenofobia não declarada e retórica anticorrupção.
Acontece que a demagogia populista cavalgou bem a crise dos refugiados. Tendo a componente xenófoba sido acentuada. Aliás, o espanto e o medo perante milhões de refugiados nas nossas fronteiras, fez dela uma das forças motrizes do Brexit.
O medo é o catalisador que acelera a fabricação da fórmula populista. No início do outono, durante uma ação de campanha em Berlim, foi perguntado a um dos dirigentes da AfD alemã por que razão os alemães teriam tanto medo da vaga de refugiados. É que apesar de terem chegado muitos à Alemanha, não contribuíram para o aumento da criminalidade ou da pobreza.
“A perceção é a realidade”, respondeu Georg Pazderski. “O que as pessoas sentem é o que percecionam como realidade. E atualmente os nossos cidadãos sentem-se mal e inseguros”, disse, citado pela revista Time.
Num estudo intitulado Perigos da Perceção, o grupo de investigação britânico Ipsos MORI concluiu que os europeus tendem a sobrestimar o número de estrangeiros residentes. Assim, em média, os alemães pensam que 26% da população do país é estrangeira. Na realidade são 12 por cento.
Os resultados eleitorais dos populistas alimentam-se do medo. O que está a deixar os partidos tradicionais sem respostas. É muito mais fácil incutir receios do que dissipá-los. E não têm como contrariar as forças emocionais desencadeadas pela extrema-direita, com argumentos racionais.