“Como foi possível que uma simples secretária acumulasse tanto poder e prestígio, a ponto de influenciar os rumos do Governo federal – e causar tamanho salseiro?” A questão, colocada pela revista Época, na sua última edição, já fora expressa pela revista Veja e pela generalidade dos meios de comunicação do Brasil, nos últimos dias. A resposta começou a ser dada pela polícia e pela justiça do país quando, a 23 de novembro, foi publicamente conhecida a Operação Porto Seguro. Desde então, além das buscas judiciais realizadas em dezenas de instalações públicas, 19 pessoas foram detidas e formalmente acusadas de terem formado uma “quadrilha” suspeita de ter montado um esquema de favorecimento de interesses privados, em processos públicos. Do vasto cardápio de crimes alegadamente cometidos constam corrupção, tráfico de influências, falsificação de documentos, “violação de sigilo funcional” e “falsidade ideológica”. E a protagonista do escândalo dá pelo nome de Rosemary Nóvoa Noronha, uma discreta mulher de 57 anos. Porquê? Pela simples razão de se autointitular “namorada de Lula”, o Presidente entre 2003 e 2011, para conseguir todo o tipo de favores e mordomias.
Dona Marisa sabia?
Alguns desses favores e mordomias até podem parecer caricatos e triviais, como conseguir cirurgias estéticas gratuitamente, ser “convidada” para cruzeiros na companhia de ilustres figuras musicais – caso da dupla sertaneja Bruno&Marrone -, ter direito a um camarote no Sambódromo do Rio de Janeiro, durante o Carnaval, ou frequentar o consultório de Roberto Khalil, o mesmo médico de Luís Inácio “Lula” da Silva e Dilma Rousseff, a atual Chefe de Estado. O problema é esta antiga secretária ter conhecido uma carreira meteórica, à sombra do PT, o partido no poder, e dos seus principais dirigentes, ao mesmo tempo que usou todos os seus contactos para múltiplas traficâncias, até ser sumariamente despedida, por ordem de Dilma, há duas semanas.
Rosemary e Lula, segundo a imprensa brasileira, conheceram-se em 1993 e terão alimentado, desde então, um caso amoroso que era conhecido por várias pessoas – desde funcionários da segurança do antigo sindicalista metalúrgico a ministros. O porta-voz de Lula, José Chrispiniano, anunciou, entretanto, que este assunto não irá merecer quaisquer comentários, por ser do foro privado. A Época alega que “a investigação demonstra que o poder de Rose”, casada e com duas filhas, “advinha da relação dela com Lula”. E que não existem indícios de que ele soubesse dos esquemas da teia criminosa nem de que tivesse beneficiado do que quer que fosse: “Cometeu o erro de deixar que essa secretária se valesse da íntima relação de ambos”, afirmou à revista um amigo do ex-Presidente e de “Dona Marisa” Letícia, mulher de Lula desde há quase quatro décadas.
Aliás, a antiga Primeira Dama tinha razões de sobra para não ver com bons olhos a proximidade entre o marido e a secretária-assessora-amante. Rosemary terá feito 24 viagens ao estrangeiro durante os dois mandatos de Lula no poder, mas nunca integrou nenhum comitiva em que “Dona Marisa” estivesse presente. E mesmo quando ele abandonou o cargo e foi internado no hospital sírio-libanês de São Paulo por causa de um cancro, entretanto debelado, as duas mulheres nunca se terão cruzado de modo a evitarem embaraços óbvios.
O que é inédito é a comunicação social brasileira não ter hesitado em denunciar o caso, devido às implicações políticas e aos atos ilícitos cometidos por Rosemary e respetivos associados. Tal como em Portugal e na França, no Brasil existe a tradição de os media não tratarem na praça pública a vida privada das figuras do poder. Apesar dos rumores e dos pormenores picantes sobre alguns dos anteriores inquilinos do Palácio do Planalto: Getúlio Vargas foi louco por uma “vedete” (atriz de revista), Juscelino Kubitschek faleceu – ou terá sido morto – após um encontro amoroso e Fernando Henrique Cardoso teve um caso tórrido com uma jornalista da TV Globo…
Jogo da fama e do proveito
Agora, não era possível ignorar o que estava em causa: a “madame”, como também era conhecida, tinha o poder de nomear pessoas para altos cargos públicos, de conseguir perdões fiscais a empresas e a empresários, de cobrar “propinas” (subornos) a quem lhe apetecesse, de arranjar bons empregos para os amigos e familiares e até de influenciar a adjudicação de obras, consoante os seus interesses. Sempre invocando o facto de ser a “namorada de Lula”: “Ela jogava com essa informação, jogava com a fama”, segundo um alto executivo que trabalhou na Companhia das Docas do Porto de Santos (CODESP), em São Paulo.
Alguns exemplos. Devido à proximidade que mantinha com os dirigentes do PT, a começar por José Dirceu – principal colaborador de Lula até ser implicado no Mensalão, tendo sido condenado a 10 anos e 10 meses de prisão – Rosemary terá sido decisiva para que Aldemir Bendine chegasse, em 2009, à presidência do Banco do Brasil (BB). Nesse mesmo ano, não se limitou a colocar o seu antigo marido, José Noronha, no conselho de administração de uma das maiores seguradoras do país, a Brasilprev. Como o senhor não tinha currículo nem formação superior, pediu a um dos seus parceiros de quadrilha, Paulo Vieira (demitido há duas semanas do cargo de diretor da Agência Nacional de Águas), para que lhe forjasse um diploma universitário. Por fim, um episódio denunciado por Anthony Garotinho, deputado federal e antigo governador do Rio de Janeiro: numa visita a Portugal, Rosemary aterrou no aeroporto Francisco Sá Carneiro com uma “mala diplomática” contendo 25 milhões de euros que viriam, depois, a ser depositados num balcão do BES, na Invicta. O banco português, confrontado pelo jornal digital Brasil.247, negou categoricamente que tal tenha ocorrido. À hora de fecho desta edição, Garotinho interrogava o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, no Parlamento de Brasília, sobre este assunto e toda a Operação Porto Seguro. Uma coisa é certa, o escândalo está longe de terminar…