Enquanto a cidade de Roma ardia em chamas, numa quente noite de julho do ano de 64 d.C, o imperador Nero, acusado de ter mandado atear o fogo para se inspirar e escrever poesia, continuava tranquilamente a tocar lira no seu palácio. Há outras versões que atribuem causas acidentais à catástrofe que devastou a capital do Império Romano, mas a imagem da insanidade do imperador cola-se hoje à dos políticos populistas Matteo Salvini e Luigi Di Maio, disparando frases incendiárias nas redes sociais enquanto Itália ameaça tornar-se o epicentro de uma nova crise financeira global.
Uma década depois do colapso do Lehman Brothers, a ideia de que o mundo está de novo à beira de uma grande crise mundial tem vindo a ganhar corpo. Nouriel Roubini, o economista que ganhou reputação por ter previsto a crise de 2008, acredita que a próxima está já a caminho e chegará em 2020. Nesta linha de raciocínio, Itália surge como um dos países candidatos a servir de rastilho. A economia transalpina reúne muitos dos ingredientes para a desgraça: uma pilha de dívida, um PIB que quase não cresce, bancos frágeis, um Governo instável e errático que dá sinais de não chegar ao próximo Natal.
Para aumentar as probabilidades de algo correr mal, o Governo de coligação entre a Liga e o Movimento 5 Estrelas entregou, no passado dia 15, em Bruxelas, um esboço do Orçamento do Estado que atropela as regras da Zona Euro, tão cuidadosamente reforçadas depois dos resgates que puseram em perigo a moeda única. Com a “afronta”, Roma conseguiu irritar as autoridades europeias, que enviaram de imediato uma carta pedindo explicações. Na terça-feira, 23, numa atitude inédita nestes quase 20 anos de vida que o euro já leva, a Comissão Europeia “chumbou” o documento, dando a Itália um prazo de três semanas para acatar ou ignorar a posição de Bruxelas.
A primeira reação partiu de Luigi Di Maio, líder do 5 Estrelas e vice-primeiro-ministro, através do Facebook: “É o primeiro orçamento italiano que não agrada à UE. Não me admiro: é o primeiro orçamento italiano escrito em Roma e não em Bruxelas! Depois dos danos causados, não podíamos continuar as suas políticas.” Mais à frente, acrescentou: “Se nos rendêssemos, faríamos regressar rapidamente os ‘especialistas’ pró-banca e pró-austeridade. Mas não nos renderemos. Sabemos que estamos a percorrer o caminho justo. E, por isso, não pararemos.”
“São estas coisas que enfurecem cada vez mais os italianos, e depois queixam-se de que a popularidade da União Europeia seja menor”, atirou por sua vez Matteo Salvini, ministro do Interior e líder do partido de extrema-direita Liga.
No que diz ser “um orçamento para o povo”, o novo Governo italiano reduziu a pó as projeções herdadas do anterior executivo e, em vez de um défice orçamental de 0,8% do PIB no final de 2019, avançou com uma subida para 2,4% do PIB – ainda assim abaixo do limite de 3% exigido por Bruxelas, e igualmente abaixo da projeção de 2,8% para o défice da França. Ao inverter a trajetória, Roma desrespeitou também os objetivos de redução do défice estrutural (que se agrava em 0,8% do PIB em vez de diminuir em 0,6%) e pôs em causa a redução da dívida pública, que vale 131% do PIB e continua a ser a segunda maior da Zona Euro.
Apesar de reconhecer o desvio de um “caminho que não está em linha com as regras da UE”, o Governo italiano, na sua resposta à carta de Bruxelas, sustentava o aumento da despesa nos próximos anos com “a necessidade de trazer o PIB para os níveis pré-crise”. Antes de o “chumbo” ser conhecido, o ministro italiano das Finanças, Giovanni Tria, afirmava que Roma estava aberta a “um diálogo construtivo” e garantia que o seu governo não tinha a intenção de sair da moeda única, pondo de parte a hipótese de um “Italexit”.
O furacão que virou tempestade
Sem querer desvalorizar a estratégia italiana de “confronto”, Paulo de Almeida Sande, especialista em assuntos europeus, acredita que a Zona Euro está hoje mais robusta do que há uma década. “É como se tivéssemos passado de um furação de grau 5 para uma tempestade tropical. Haverá consequências, mas menores”, afirma. “O próprio Salvini, que é quem manda, tem repetido que não quer Itália fora do euro. Não há esse risco”, diz ainda.
Apesar do “chumbo” orçamental, Paulo Sande acredita que a situação vai acabar por se resolver, com Itália a fazer marcha-atrás e a apresentar outros números que sejam aceites em Bruxelas, sem pôr em causa a sua estratégia de crescimento económico. “A Comissão Europeia vai insistir no cumprimento das regras, mas não vai fazer drama. A Itália é demasiado grande e importante para travar um braço de ferro. Já chega o Brexit”, garante. Para o especialista, “ninguém quer alimentar populismos através do ódio aos tecnocratas”. Especialmente em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu, a realizar em maio do próximo ano.
Francesco Franco, economista italiano radicado em Portugal há 14 anos, professor na Nova School of Business and Economics (NSBE), concorda que a Zona Euro está hoje “mais forte do que em 2011”. “Já não pode ser atacada externamente com a mesma facilidade, mas continua a ter fragilidades internas. E o elo mais fraco é Itália”, sustenta.
Para o docente, a proposta orçamental italiana “faz pouco sentido”. Um reforço da despesa e uma descida dos impostos “aumentam a despesa estrutural, o que vai ter impacto negativo sobre a sustentabilidade da economia”, diz.
Com efeito, o “desvio” na meta do défice italiano parece resultar de um aumento da despesa pública para cumprir “promessas eleitorais” da coligação. A criação de um “rendimento cidadão” para os desempregados, no valor de €780 mensais, uma descida dos impostos que inclui uma espécie de perdão fiscal para quem fugiu ao fisco e uma redução da idade de reforma para alguns profissionais, dos 68 para os 62 anos, a par de um aumento do investimento público, são os acréscimos de despesa que farão disparar o défice. O Governo transalpino justificou a necessidade de um estímulo orçamental para estimular o PIB, já que a economia italiana é uma das que menos crescem desde o arranque da Zona Euro. E não se antevê uma grande mudança: o PIB subirá apenas 1,5% em 2019, 1,6% em 2020 e 1,4% em 2021, ano em que a dívida pública deverá encolher para 124,6%.
Como não acredita que o Governo italiano possa recuar, Francesco Franco admite uma posição de maior força por parte de Bruxelas, embora o atual momento seja “difícil”, com o crescimento dos movimentos eurocéticos em Itália. “O novo Governo italiano escolheu deliberadamente dizer ‘eu faço o que eu quero’, não somente em termos de políticas mas também em termos das regras orçamentais, que são aritméticas e não políticas.” É por isso que não vê alternativa à aplicação das medidas corretivas previstas no Pacto de Estabilidade.
Se Roma recusar mesmo rever as metas orçamentais, Bruxelas terá de abrir um Procedimento por Desvio Significativo (condenando Itália a fazer um depósito no valor de 0,2% do PIB) ou, em alternativa, avançar de imediato para um Procedimento por Défice Excessivo, justificando que o tamanho do défice, embora não ultrapassando o limite de 3% do PIB, põe em causa a trajetória de redução da dívida pública para valores inferiores a 60% do PIB. Além do congelamento dos fundos europeus, as sanções poderão atingir até 0,5% do PIB do país infrator.
Uma crise ao estilo grego
A hipótese de uma nova crise ao estilo grego não passa de um jogo de póquer, na opinião do economista Ricardo Cabral. Culpando Bruxelas por estar a criar “uma crise na economia”, com a aparente atitude inflexível adotada perante Itália, Cabral recorda que França projeta um valor superior para o défice orçamental em 2019 (2,8% do PIB), sem que as autoridades europeias façam disso um caso.
Convencido de que Bruxelas quer dar uma lição a um aluno rebelde que não respeita as regras, como em tempos fez com Grécia, o professor da Universidade da Madeira salienta que desta vez será diferente. “Primeiro, o bicho-papão era o Syriza; agora são os populistas. Mas Itália não vai querer perder a face”, afirma, antes de enumerar os pontos fortes da economia transalpina: excedente da balança corrente, posição de investimento internacional equilibrada, saldo primário positivo e uma saída de capitais estrangeiros que até ao momento “não é muito preocupante”. Estarão por isso criadas as condições para gerir a pressão dos mercados “até existir um acordo”, mesmo que tenha de haver uma cedência de parte a parte. E, como recorda Cabral, o programa de compra de ativos do BCE ainda estará em vigor até ao final do ano.
Nogueira Leite, ex-secretário de Estado do Tesouro e Finanças, também antevê um braço de ferro entre Roma e Bruxelas, considerando que “não há espaço para grandes recuos”. “Itália, porque é Itália, não pode deixar de cumprir as regras europeias”, nem desvirtuar um mecanismo que ganhou credibilidade depois da última grande crise financeira. Mas o economista também acredita que, no final, existirá uma solução de compromisso. Ninguém em Bruxelas deseja novas crises, quando a líder alemã está numa posição frágil, o Presidente francês perde popularidade e o Brexit ameaça correr muito mal.
E Portugal, como atravessaria uma nova crise? “Se houver subida dos juros, as metas seriam postas em causa”, avança Nogueira Leite, recordando que cerca de 80% da redução esperada para o défice orçamental em 2019 assenta nos dividendos do Banco de Portugal, da Caixa Geral de Depósitos e na descida da fatura com juros. “A recuperação ainda é frágil”, salienta. “Não estou muito tranquilo, mas espero que o presidente do Eurogrupo [Mário Centeno] consiga ajudar a encontrar uma solução.” Conseguirá?