O escritório no topo do um edifício espelhado ao lado da Estação do Oriente já está lotado. Às primeiras horas da manhã, cerca de duas dezenas dos 155 trabalhadores da Feedzai espalhados pelo mundo estavam ali com os olhos pregados nos seus computadores (além de Lisboa, a empresa está em Coimbra, Silicon Valley, Nova Iorque e Londres). Na zona lounge, uma mesa de snooker está à disposição e uns sofás ornamentados com almofadas com inscrições CTL, ALT e DELETE convidam a sentar. “Estão a ver este espaço vazio por aqui?”, aponta Nuno Sebastião.
“Só avanço para outro escritório maior quando tudo isto estiver cheio de mesas para o pessoal meter os seus laptops. Não gosto de dar passos maiores do que as pernas”, adianta o co-fundador (com Paulo Marques e Pedro Bizarro) e CEO da Feedzai. Nada mau, para início de conversa. Diria quase improvável para uma empresa que muitos apontam como um dos próximos unicórnios portugueses, eleita pelo Tech Tour Growth 2016 como uma das 50 mais promissoras.
(Nuno Sebastião é o primeiro entrevistado da rubrica #minutosinspiradores VEJA O VÍDEO)
Entre as centenas de pequenas startups que brotaram em Portugal os últimos anos, muito poucas chegam, como a Feedzai, à primeira divisão do campeonato mundial das tecnológicas. É uma das mais bem-sucedidas empresas mundiais a operar no big data, em particular nas áreas de deteção de fraude em tempo real para os sectores bancários e e-commerce, acaba de ultrapassar os 2 mil milhões de dólares em análise de transações diárias, em tempo real, em todo o mundo. Dados impressionantes para quem começou há meia dúzia de anos em Coimbra. Ouvir Nuno Sebastião é uma lição para todos os jovens empreendedores que querem lá chegar. Uma conversa sobre sonhar alto, mas sempre com os pés bem assentes na terra. (Leia aqui o editorial Ícaros e Unicórnios)
Foi a engenharia aeroespacial que o ajudou a sonhar alto?
(Risos) Foi um conjunto de factores. Saí de casa dos meus pais aos 15 anos. O meu pai é pedreiro e a minha mãe doméstica e estava no sétimo ano em Cantanhede, onde era o melhor aluno da escola, quando uma professora de matemática lhes disse que devia ir estudar para Coimbra. O Pedro, meu colega co-fundador, também veio dessa escola. Felizmente os meus pais tinham um apartamento em Coimbra e lá fui. Sempre tive a vontade de querer fazer mais e melhor. Acabei por ir parar à Agência Espacial Europeia penso que também um pouco por causa disso.
Como é que chegou lá?
Sou de Engenharia informática e queria muito ir para Silicon Valley, mas acabei por ficar colocado da Agência através do programa Contacto. Nem sabia bem o que era a ESA. O difícil foi fazer o percurso lá dentro, onde fiquei sete anos. Só se entra para os quadros mais tarde. Em 2006 fui o primeiro português a entrar nos quadros, fui gerir todo o software do controlo de operações. Foi fabuloso durante três anos. gerir um budget enorme e centenas de pessoas… Mas para um tipo ambicioso ser português não abria qualquer caminho – aquilo funciona em função das quotas de países. Nas chefias só estão alemães, italianos, franceses e espanhóis, até me chegaram a dizer para eu casar com uma alemã para ter a nacionalidade. São organizações já muito empedernidas e aborrecidas, e muito dinheiro mal gerido, e isso cria muita frustração. Ou seja, tive de sair dali. Em 2007, comecei o MBA na London Business School e decidi que queria montar algo na área da engenharia.
Quando se juntaram os três já sabiam o que iam fazer?
Ao certo não. Mas isto é mais ou menos como olhar para uma receita. Percebíamos que tínhamos ingredientes bons e que os podíamos combinar bem. Somos todos de engenharia pura, mas eu tinha as simulações e a experiência da AESA, o Pedro tinha um doutoramento em processamento de big data em tempo real, e o Paulo constrói sistemas distribuídos de alta escala, mecanismos infalíveis. Na verdade, no início, andámos a perceber o que podíamos fazer durante quase dois anos.
Saber emendar o rumo e responder às oportunidades que aparecem é importante para quem está a começar?
Sem dúvida. Tentámos utilities, telecoms e até saúde (análise de dados clínicos) antes de chegarmos à detecção de fraude. Qualquer startup passa por isso, até perceber onde se ganha mais dinheiro. Aconteceu o mesmo com a Airbnb, Uber e com outras startups. Nós percebemos que era nos serviços financeiros que melhor nos posicionávamos, e quando fizemos um pitch à Sap um investidor disse: damos-vos dinheiro mas tenho duas condições: vão para os Estados Unidos e, de todos os “use cases” que têm, escolhem apenas um e é só isso que vão vender.
Para conseguirem o financiamento inicial dos dois milhões de dólares acabaram por ter uma ajuda preciosa. Como foi essa história?
Um dia um tipo, partner da Foundation Capital Kraftwerk, ouviu-me e gostou tanto que disse que me ia dar uma ajuda. Basicamente, mandou um email para os seus amigos a apresentar-me e abrir-me a porta para lá ir fazer o meu pitch. Isso vale ouro em Silicon Valley. Houve ali 15 dias em que gastei os sapatos a correr Sand Hill em Palo Alto, a rua onde estavam todos os venture capitalists. Mais de 20 e tal. Era nega atrás de nega, foi muito mau em termos anímicos, baixa-nos muito a confiança. Mas isto é um jogo de números, se temos algo que é bom, é continuar e alguém haveria de perceber. Só é preciso que um diga que sim e os outros vão atrás. Em 10 minutos de conversa consegui a primeira ajuda, juntaram-se outros e conseguimos os dois milhões com a Saphire ventures, ES Ventures, EDP e Novabase. É mais ou menos como no Shark Tank, mas na vida real. (risos)
De repente, três putos viram-se com dois milhões na mão. Já tinham tudo bolado?
Já tinha tido a experiência de gerir uma empresa e sabia bem que o dinheiro se gasta facilmente. Gerimos desde o primeiro minuto sempre com muito cuidado. Sempre com precaução não estar em prejuízo, e nisso somos muito diferentes das outras startups. Prefiro ter uma almofada e não estar a assumir sempre que vou levantar mais dinheiro ao mercado.
Isso é uma perspectiva muito conservadora, vindo de um CEO de uma startup.
Sim, mas é essencial para estar com pés assentes na terra num negócio.
Quão diferente foi agora angariar 17,5 milhões de dólares nesta segunda ronda, quando conseguiram bater o record de investimento captado por startups sedeadas em Portugal?
Foi muito mais fácil. Mas levantar dinheiro dos investidores é o mais caro que podes levantar. O que dás em troca é uma quota da tua empresa e controlo sobre ela. É caro. O investidor tem de trazer valor acrescentado, clientes e muitos contactos. Para quem acredita mesmo em si e no produto, só pelo dinheiro não vale a pena.
Como funciona a vossa tecnologia?
Hoje no mundo digital é importante saber se tu és mesmo tu quando estás a fazer uma compra algures. O que nós fazemos é, em tempo real – três milissegundos – confirmar se tudo está correcto numa transacção digital. Em média a percentagem de fraude é baixa, menos de 1%, mas estamos a falar de muito dinheiro. O que fazemos é confirmar se o cliente costuma comprar naquele sítio, se está no perfil daquele tipo de produtos, se não usou o cartão fisicamente antes numa distância impossível… Ou seja, contextualizar a informação daquelas transacções com tudo o que se sabe do comprador e do comerciante. E isso multiplicado por milhões de comerciantes e consumidores, em três milissegundos. Somos os únicos que conseguimos fazer isso a esta velocidade em tempo real.
Onde vão buscar essa informação sobre o comprador?
Usamos informação pública de crédito e até das redes sociais que compramos por exemplo à Google, operadoras de telecomunicações e agências financeiras, e cruzamos tudo isso com a informação interna super detalhada que trabalhamos daquele cliente e do seu perfil financeiro mais alargado.
Como salvaguardam a privacidade dos clientes?
Temos uma premissa de ouro: não ver os dados dos clientes – a informação chega cifrada no mecanismo de um para um matematicamente irreversível – e isso protege-nos também de um ataque pirata, por exemplo.
Estamos expostos no mundo virtual e tudo o que fazemos deixa marca. Conseguimos traçar um perfil absolutamente fidedigno de alguém pelo rasto electrónico que deixa?
Sim, sem dúvida. Há um princípio que diz que é muito difícil fingir normalidade. Conseguimos perceber tudo sobre aquela pessoa, cliente ou comerciante, faz e até prever o que ela vai fazer a seguir. Melhor ainda do que as próprias pessoas… Há uma história muito conhecida: a Google hoje consegue detetar com mais precisão a migração de gripes do que a Organização Mundial de Saúde, ou se uma mulher está grávida ainda antes de ela ter feito o teste, só pelas pesquisas que se fazem dos sintomas.
São uma espécie de detetives privados tecnológicos contratados pelas empresas. Qual foi o caso que vos deu mais gozo decifrar?
Um caso em que começamos a ver, em vários sítios nos Estados Unidos, vários princípios de fraudes e começamos a perceber que havia um foco. Percebemos que havia uma zona infectada e uma rede organizada, e que o centro estava num sítio concreto. Consegue-se fazer este tipo de coisas só a olhar para dados, é lindo! Era uma coisa em grande, milhões por dia, com dois bancos. E apanhámo-los.
E os “maus” estão cada vez mais sofisticados?
Sim, e muito organizados. São profissionais mesmo, que fazem um horário de trabalho e que se dedicam só a isso. O crime organizado usa muito estes mecanismos para limpar dinheiro, a história do tipo de rouba um cartão era dantes… Agora estamos a falar de esquemas à séria. E um sistema é tão seguro quanto o elo mais fraco.
A tecnologia atravessa realmente fronteiras? Quando um português chega com um produto destes a linguagem tecnológica funciona aqui como na China?
Sim, absolutamente. Na tecnologia boa, de ponta, não importa tanto de onde vens, mas falar a linguagem tecnológica de igual para igual. Estivemos na Google com a equipa que faz machine learning, e conseguimos falar de igual para com eles e eles respeitam-te automaticamente.
No início ser um português foi um handicap, mas agora já não?
Nunca senti muito isso, só na agência espacial. Nos EUA percebi que falávamos a mesma linguagem e que na verdade somos todos iguais, a nacionalidade interessa pouco.
Quando recebeu a distinção Tech Tour Growth 2016, disse que Portugal se está a transformar a Silicon Valley da Europa. O que temos por cá que faz com que sejamos um ninho europeu de startups tecnológicas?
Várias coisas. Temos um caminho feito fenomenal – temos muitos problemas no ecosistema, muita ilusão que é normal quando a malta é muito imberbe. Mas temos uma grande capacidade de recrutar pessoas para cá, porque estamos no meio do mapa mundo entre a Europa e os Estados Unidos e não na periferia da Europa como dizem. Temos gente com boa capacidade técnica, temos preços competitivos e conseguimos atrair gente boa que vem de fora. Este novo élan de cidade cool também ajudou muito. Não temos muitas startups portuguesas a liderar, é verdade que não, somos meia dúzia deles. O que podemos é ser um hub de massa crítica que trazemos para cá.
Sendo assim, porque precisaram de ir para fora e abrir escritório em Londres, Nova Iorque e Palo Alto?
Não temos cá uma especialização de hub de startups como por exemplo acontece em Israel que é cibersecurity ou Londres que é fintech. E quem está nestas áreas tem de estar nestes hubs especializados. Por cá há muita coisa popularucha que nunca vai ganhar escala, coisas que não interessam nada. Mas estamos muito melhor do que estávamos há uns anos. Fico é doido quando ouço falar em unicórnios, por cá é sempre 8 ou 80: não temos nada e de repente pensamos logo que somos os maiores.
Foi por isso que escolheram Silicon Valley?
Tive de ir para Silicon Valley porque todos os clientes estão lá. Quem quer ganhar um Óscar vai para Hollywood. E lá eles são muito bons a reciclar o que não interessa, aqui temos muitos walking zombies, empresas que já deviam ter morrido e partido para outra e não saem da cepa torta. Nos EUA é soma e segue.
Mas manterem-se uma empresa portuguesa é um ponto de honra?
Absolutamente! Mas tivemos alguns venture capitalists nos Estados Unidos que pediram para mudar para lá. Alguns que até nos disseram que só investiam em empresas que estivessem no driving range do seu Tesla. (risos)
Que soberba!
Sim, completamente, e a sede continua a ser em Coimbra, com muito orgulho. Mas já vencemos o estigma, nesta fase já não importa. E as coisas melhoraram bastante. Em 2013 não tínhamos um escritório de advogados que percebessem alguma coisa de vc. Demorávamos três meses a fechar uma ronda que tipicamente se fecha num mês, por causa das burocracias e questões jurídicas parvas. Hoje está tudo muito melhor, é um facto. E o João Vasconcelos [secretário de Estado da indústria] está atento a isto tudo.
Segurar estes talentos é muito difícil?
Tenho muita dificuldade em manter a minha malta, não querem só um bom salário, mas perspectivas de que a empresa vai crescer. Querem bónus e ações, querem o upside. Mas isso permite também exigir muito mais a quem está connosco. `Às vezes são 24 horas non stop, a bombar em diferentes fusos horários.
Não gosta do conceito, mas há quem diga que a Feedzai pode vir a ser o próximo unicórnio português. Com crescimentos de 300 por cento até agora, quando é que isso pode ser expectável?
Ter mil milhões de avaliação até é fácil, porque a avaliação é feita no dinheiro que se angaria com base no capital que se cede. Para se ter mil milhões tem de se abdicar de outras coisas, nomeadamente o controlo e outras condições muito importantes. Serem os primeiros a tirar o dinheiro, direitos de veto, controlarem um possível IPO, etc. E nem sempre isso interessa.
Não querem entrar na loucura para ver qual é o próximo unicórnio.
No folclore que se criou, culpa dos media da área, só se fala do estatuto de unicórnio sem se explicar os direitos de controlo que se abdica para ter essa avaliação. Se eu quisesse amanhã ter uma avaliação de mil milhões, tinha. Só que não é esse o meu objectivo, eu valorizo controlo e não avaliação. Quero levar esta empresa o mais longe possível, e é importante termos controlo à medida. Neste momento temos 40 por cento do capital, mas com menos de 50 por cento temos controlo com direitos de voto.
Como olha para o futuro?
A avaliação da segunda tranche representou mais de 10x a avaliação anterior, mas desde então até agora já subiu 4,5x desde o ano passado. Olho para trás e são números UAU! Nós somos malta relativamente humilde… Éramos três tipos e um cão! Não estávamos à espera disto… (risos) Temos de ter muito cuidado para não cair em coisas estúpidas, peneiras, vícios parvos. Há que manter os pés bem assentes na terra sempre. Há dois caminhos, para cima e para baixo – só que para baixo dói muito mais e é mais rápido! O facto de estar em Silicon Valley e ver isso a acontecer todos os dias faz perceber muito bem que hoje se é o maior e amanhã não se vale nada. É preciso crescer com consistência e humildade. Há empresas em Portugal que levantaram meia dúzia de tostões e começam logo a falar de unicórnios, é ridículo!
Não revelam a vossa avaliação, mas e receitas?
Em 2015 fizemos 19,5 milhões de receitas, 3,5 milhões de lucros. Em encomendas fizemos 54 milhões. Este ano andamos por volta dos 40 milhões mas em encomendas já temos muito mais, espero chegar aos 120 milhões. E isso garante-nos alguns anos. Começa a ser mesmo interessante…
E lucros, esperam ter?
O objectivo nesta fase é não dar prejuízo porque ainda estamos a investir muito. E tenho de ter alguma almofada e algum tipo de margem para se e quando o mercado virar. Fala-se de muita da bolha e nós não somos loucos.
Para os putos que estão a começar agora, qual o conselho de quem já trilhou muito caminho?
Olha-se hoje para a Tesla e Elon Musk como se fosse o maior, mas ele fez a Paypal, vendeu aquilo e encaixou 1,5 mil milhões. Pouco depois tinha zero, porque estava tudo enterrado na Tesla e na Space x. A única coisa que o fez chegar longe foi ter a ideia, e continuar, continuar. Costumo dizer “keep pushing, keep going”. A diferença entre um visionário e um maluco é muito pequena. É preciso não ter medo de mudar e de afinar a estratégia, mas acima de tudo o que importa é perseverança. Fico lixado se perder um pitch, mas fico menos lixado se souber que demos tudo. E nunca se deve dar coisas por garantidas: não é porque se levantou 100 mil euros que se é o maior. Há que estar todos os dias estar obcecado por aquilo. O Andy Grove, CEO da Intel, diz que só os paranóicos conseguem lá chegar, aqueles que estão continuamente obcecados em fazer mais e melhor.
Como é a vossa rotina diária?
É dura! Cheguei ontem de Londres, saímos na terça para Nova Iorque, fomos para uma cidade a 100 km, dormi durante a noite num voo para São Francisco, venho para Lisboa noutro durante a noite e depois sigo para Londres. Estamos de um dia para o outro numa cidade se for preciso para fazer um pitch, fazemos conferences calls em skype às 4h da manhã. É a vida.