Mark Andrews lembra-se de Mandela entrar no balneário, apertar a mão a cada um dos jogadores, lançar algumas palavras de motivação, interromper para cumprimentar duas empregadas que estavam a um canto da sala e voltar para terminar o discurso. Daí a uns minutos, os Springboks (a seleção sul-africana de râguebi) tornar-se-iam uma lenda, ao vencer pela primeira vez, nesse 24 de junho de 1995, a final do Campeonato do Mundo contra a poderosíssima Nova Zelândia, no lotado estádio de Ellis Park, em Joanesburgo. Uma partida, também eternizada pelo filme Invictus, que ultrapassou as fronteiras do desporto, servindo para unir uma nação em cacos, na sequência do fim do apartheid.
A vitória dos Springboks é ainda hoje um marco da rutura com o regime racista que dominou o país entre 1948 e 1994, quando a cor de pele determinava quem era cidadão de primeira e de segunda. O râguebi, anteriormente odiado pelos negros e um dos símbolos da supremacia branca, passou a ser um fator de união.
Vinte e um anos depois, Mark (em Portugal para participar numa partida amigável entre lendas do râguebi sul-africano e estrelas da seleção nacional portuguesa que estve presente na Taça do Mundo de 2007, este sábado, 4, às 15h, no Jamor) recorda a história com reforçada nostalgia, por sentir o seu país a regredir, depois do tanto que foi ganho. “Os políticos não incentivam a seleção a jogar pela nação, mas sim por outros interesses. Entraram num jogo que não lhes pertence. Para que uma seleção seja bem-sucedida é preciso acreditar-se muito no nosso país, querer defendê-lo e termos apoio. Nós temos os jogadores, a técnica, mas sem a crença torna-se difícil.”
Aos Springboks de hoje faz-lhes falta o tal segundo treinador: Nelson Mandela. “A equipa seria muito melhor se estivesse unida em torno de um líder.” Na altura, acharam que era um sonho impossível, até Madiba lhes dizer que era aquele o destino deles. “Só queríamos dar o nosso melhor para não humilharmos a pátria. Mas depois, quando temos um homem daqueles a dizer-nos aquilo, sabemos que não podemos perder. Se acreditarmos, tudo é possível. E ele fez-nos acreditar.”
Mark recorda Nelson Mandela como “um homem muito especial, um ser humano fora de série”. “Conhecê-lo, mais do que um prazer, foi uma honra, e eu fui sortudo o suficiente para ter estado com ele algumas vezes.” Acima de tudo, elogia-lhe a simplicidade, o homem por trás do político. “Quando nos conhecia, falava mesmo connosco, apertava-nos a mão, olhava-nos nos olhos, como se fôssemos a única pessoa ali. Importava-se realmente. Eu era um miúdo, tinha 23 anos, e só pensava ‘Uau, ele está a falar comigo, está mesmo a dar-me atenção’. Não é normal conhecermos uma pessoa tão famosa que na verdade é também incrivelmente genuína. Sei que isto parece piroso, mas conhecê-lo fez de mim uma melhor pessoa.”
No jogo deste sábado, Mark quer, de certa forma, fazer jus à história – não se trata de vencer. “Só queremos jogar, conhecer pessoas e usar o râguebi como uma plataforma para unir gerações.”
Da seleção sul-africana, vai também fazer parte John Smit, considerado por muitos como o melhor jogador sul-africano de todos os tempos. Em 2007, foi um dos responsáveis por a África do Sul ter voltado a levar a taça do Campeonato do Mundo para casa. “Se pudermos, nem que seja de uma pequena forma, fazer a diferença e influenciar o râguebi em Portugal, para nos já seria um grande sucesso.” Smit ocupa uma posição privilegiada, a de capitão. “Sou um dos responsáveis por uma das maiores organizações do país. Pode parecer incrível, mas se os Springboks ao sábado não jogam bem, à segunda-feira está o povo todo deprimido. Se ganharmos, toda a gente fica feliz, não importa o preço do petróleo ou que a economia esteja em baixo. É esse o poder que o râguebi tem no nosso país. Por isso, quando aceitas a responsabilidade do cargo de capitão, sabes que te vão amar ou odiar: ‘big hero or big zero’.”
Os Springboks já fazem estes jogos amigáveis pelos quatro cantos do planeta desde 2004. Para o treinador da equipa, Ian McIntosh, é o melhor trabalho do mundo. “Não precisamos de praticar e bebemos muito. É realmente fácil”, ri-se. O objetivo da equipa, acrescenta McIntosh, um pouco mais a sério, é espalhar a palavra do râguebi, o gosto e entusiasmo pelo jogo. “Uma lenda não é alguém que se aproveita do jogo, é alguém que devolve ao jogo aquilo que o jogo lhe deu. Estes homens não recebem nada por estar aqui. Ao todo já treinámos mais de 60 mil crianças”, que têm a oportunidade de jogar de igual para igual com os seus ídolos. O dinheiro que conseguem angariar é para os clubes desses miúdos. “É por isso que eles são lendas.”
É a primeira vez que as estrelas dos Springboks estão em Portugal. O empresário Tim Vieira (famoso do grande público pela sua participação no Lago dos Tubarões), impulsionador desta visita, garante que temos muito a aprender com eles. “É um sonho que se torna realidade. Eles têm tanto para nos ensinar… Não é só o râguebi, é principalmente o espírito de equipa com que cresceram, que é algo que gostava muito de ver no râguebi português”.
Tim Vieira, nascido na África do Sul, está assim a unir os seus dois países. Agora, diz que os Springboks se vão apaixonar por Portugal, tal como ele se apaixonou. “Sei que vão adorar isto. Nós temos tudo: tempo, comida, vinho, praias…”
Tomaz Morais, antigo selecionador de râguebi na altura em que Portugal participou na Taça de Mundo de 2007, em França, e atual coordenador de todas as seleções portuguesas da modalidade, foi o eleito para orientar os Lobos – a equipa nacional. Na antevisão do jogo, confessou que jogar contra uma seleção mítica será um momento especial. “É uma honra fantástica poder voltar a estar com a camisola de Portugal, perante uma seleção nacional que é um misto de várias gerações.”
No campo, quem manda é o capitão Luís Piçarra. “Todos nós que vamos estar presentes no jogo de sábado já deixámos de jogar há alguns anos. Sempre que tínhamos um jogo na seleção, perguntávamo-nos se poderia ser o nosso último. E agora temos esta oportunidade única e realmente muito especial.”