Qual foi o melhor jogo de sempre, num Mundial de futebol? A escolha é difícil, mas há três desafios que recolhem uma quase unanimidade: a vitória da Itália sobre a Alemanha (4-3) nas meias-finais do México’70, o triunfo do Brasil sobre a Polónia (6-5) na primeira ronda do França’38 e, claro, o Portugal-Coreia do Norte (5-3) dos quartos-de-final do Inglaterra’66. Na próxima segunda-feira, a equipa das quinas volta a encontrar o adversário asiático, quase 44 anos depois desse único confronto: tal como então, não se sabe o que se há-de esperar de um adversário praticamente desconhecido, mesmo que agora os meios de “espionagem” sejam infinitamente melhores.
O “filme”, em nove episódios, dessa tarde inesquecível de 23 de Julho de 1966, contado por alguns dos seus protagonistas: os antigos jogadores Hilário, Jaime Graça e José Augusto, com a “participação especial” de Artur Agostinho, que relatou a partida na então Emissora Nacional.
1. OS DIAS ANTERIORES
Quatro dias antes, Portugal batera o bicampeão Brasil por 3-1 e garantira a qualificação para os quartos-de-final, na sua estreia em campeonatos do mundo. Pela frente encontrava a Coreia do Norte, autora de um dos maiores “escândalos” da história da prova ao bater a Itália por 1-0.
A moral estava em alta e o optimismo reinava na comitiva nacional.
“As três vitórias na fase de grupos galvanizaram-nos e, durante esses dias, treinámos bem. Nem pensávamos muito nos coreanos, achávamos só que a Itália os tinha subestimado”, recorda José Augusto, 73 anos, considerado, naquela época, um dos melhores extremos-direitos do futebol mundial. Outro extremo da selecção, Jaime Graça, 68 anos, então ainda no Vitória de Setúbal, reconhece que sabia muito pouco sobre os coreanos: “Naquele tempo, não era fácil conhecer os adversários. Ainda por cima eles eram fisionomicamente todos iguais…”
Já o defesa Hilário, 71 anos, tem outra visão, que ajuda a explicar o que se passou em Liverpool: “Depois de ganharmos ao Brasil, estávamos descontraídos, convencidos de que a Coreia era canja. Por isso, não nos concentrámos como devíamos para esse jogo.” Artur Agostinho, 89 anos, concorda: “Os jogadores talvez tenham entrado na euforia e é possível que tenham minimizado os coreanos.”
2. A PALESTRA NO BALNEÁRIO
Antes de subirem ao relvado do estádio de Goodison Park, com mais de 51 mil espectadores nas bancadas, muitos deles a apoiar os underdogs asiáticos, os jogadores portugueses ouviram, na cabina, a prelecção do treinador Otto Glória. Como se fosse, apenas, mais uma… “Ele fez o discurso habitual, que devíamos ter precauções, que não conhecia bem o adversário e que jogássemos como sempre tínhamos feito”, lembra Jaime Graça. “Tentou galvanizar-nos, mas creio que ele nem tinha visto o jogo com a Itália”, diz José Augusto, enquanto Hilário reconhece: “Nós não prestámos atenção às suas palavras. Entraram por um ouvido e saíram pelo outro…”
3. 55 SEGUNDOS: GOLO DA COREIA DO NORTE
Após o apito inicial do árbitro israelita Menachem Ashkenazi, Portugal saiu com a bola mas, pouco depois, ela voltava ao círculo central: logo aos 55 segundos, Pak Seung-zin, com um remate à entrada da área, marcava o primeiro golo, na baliza defendida por José Pereira.
Na bancada de Imprensa, Artur Agostinho relatou o lance mas não se assustou: “Achei que tinha sido um acidente e que iríamos dar a volta ao resultado.” Mas Jaime Graça não tem dúvidas: “A nossa entrada em jogo foi um desastre.”
4. UM, DOIS, TRÊS GOLOS… AOS 25 MINUTOS
“Até hoje, não consigo dizer um nome de um jogador da Coreia do Norte, mas quando dei por mim já estávamos a perder 3-0”, recorda Hilário. “Os portugueses estão despedaçados!”, decretava, no seu relato para a BBC, o jornalista David Coleman, aos 25 minutos, quando Yang Sung-kook aproveitou um ressalto para marcar o terceiro golo, apenas três minutos depois do segundo, apontado por Lee Dong-woon.
“Ficámos estupefactos. Olhávamos todos uns para os outros sem acreditarmos no que nos estava a acontecer. Senti-me descrente”, confessa, agora, José Augusto. Artur Agostinho sentiu que “a coisa começava a ficar dramática”, apesar de continuar a relatar, em directo, a sua esperança numa reviravolta. Foi nessa altura que se deu um momento decisivo, conforme recorda José Augusto: “O Otto Glória chamou-me à linha e pediu-me para marcar o número 8, reconhecível por causa de uma joelheira. Disse-me que a bola passava sempre por ele. Passei a cortar-lhe a linha de passe e ele deixou de ter influência no jogo.”
5. EUSÉBIO REDUZ LOGO A SEGUIR
Dois minutos depois, porém, um passe de Simões deixou a bola ao alcance de Eusébio. E o Pantera Negra, com um tiro de pé direito, devolveu a esperança à equipa. Sem festejar – a sua única preocupação era a de repor rapidamente a bola em jogo.
“Esse primeiro golo foi importantíssimo. E a forma decidida como o Eusébio foi buscar a bola ao fundo da baliza marcou-nos a todos. Colectivamente, eles já não estavam bem e nós começámos a acreditar”, recorda José Augusto, enquanto Jaime Graça assinala: “Assim que marcámos o primeiro, sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, íamos dar a volta.” Na Emissora Nacional, Artur Agostinho assinalava que um segundo golo antes do intervalo seria “essencial”.
6. A BRONCA DE OTTO
O segundo golo apareceu aos 43 minutos, novamente por Eusébio, de penálti, a castigar um derrube a José Torres. Quando desceram ao balneário, os jogadores portugueses sabiam que estavam de volta ao jogo, mas conscientes de que tinham de enfrentar um técnico à beira de um ataque de nervos.
“Conhecia muito bem o Otto Glória e já sabia que ele lhes ia dar um valente puxão de orelhas”, recorda Artur Agostinho, enquanto Hilário tem uma percepção mais próxima e directa do que se passou: “Otto chegou ao balneário, deixou-nos sentar, pendurou o casaco e tirou a gravata. Depois, começou a dizer: ‘Quando dei a táctica para o Brasil vocês foram fazer as vossas tácticas para o corredor e ganhámos 3-1. Eliminei o meu país e quando voltar lá vão cortar-me os tomates porque o traí! Hoje, com uma equipa que ninguém conhece, estão a perder?! Olhem, eu não dou táctica, não dou nada. Só quero é que vocês ganhem este jogo’. Saiu porta fora e foram os mais experientes, o Germano, o Coluna e o José Augusto, que tomaram posição. Fizemos um exame de consciência e vimos que não estávamos a cumprir.”
Dessa “bronca”, José Augusto recorda uma frase: “Vocês deram-me uma grande alegria ao vencer os meus irmãos brasileiros e agora estão a dar uma barraca tremenda.”
7. O SHOW DO PANTERA
Bastaram 11 minutos para a revolta do técnico dar os seus frutos. Passe de Simões e remate de primeira de Eusébio. O jogo estava empatado mas não por muito tempo: aos 59 minutos, novo penálti, desta feita a castigar um derrube ao Pantera Negra, que arrancara do seu meio-campo pela esquerda, de forma imparável. A dez minutos do final, José Augusto fechou a contagem, de cabeça, após canto de Eusébio e desvio de José Torres.
“Tínhamos uma grande experiência internacional e eu tinha a certeza absoluta de que aquilo ia acontecer. A jogada do Eusébio que dá o 4-3 é uma demonstração perfeita de como se conduz a bola à velocidade correcta, com passadas certas e toques exactos na bola”, assinala Jaime Graça, enquanto o autor do último golo lembra: “A segunda parte foi toda nossa. Fizemos o 3-3, depois há o lance do Eusébio e o 5-3, que eu marquei, foi a cereja no topo do bolo, acabou com quaisquer veleidades que eles tivessem.”
“O Eusébio estava num dia endiabrado. Ele era um cavalão! Galgou terreno, suportou aquelas faltas que começaram a 20 metros da área e só na última é que caiu para conseguir o penálti. Se fosse outro tinha caído antes…”, acrescenta Hilário, enquanto Artur Agostinho refere a “cavalgada impressionante” do número 13 português: “Confesso que já nem me lembrava bem, mas revi-a, no outro dia, na televisão. Ele era, de facto, um grande jogador!”
8. TUDO ESTÁ BEM QUANDO ACABA BEM
O regresso ao balneário foi diferente. Em vez da bronca… “Parabéns moçada, estão aqui as minhas duas garrafas de whisky para bebermos como aperitivo antes do jantar”, disse Otto Gloria.
“Estava tudo maluco. A coisa foi de tal forma que nos fomos embora e até nos esquecemos do Otto Glória, que tinha ido à conferência de Imprensa. Quando chegou ao hotel, estava todo chateado e fechou-se no quarto. Eu é que fui buscar uma escada, entrei-lhe pela janela e lá o convenci a juntar-se a nós”, ri-se José Augusto, recordação partilhada por Jaime Graça: “Sentíamos que podíamos ganhar o Mundial. Quando o Otto chegou ao hotel, já estávamos a jantar… bacalhau, que era o prato servido quando ganhávamos.”
Hilário é que não concorda: “Esquecermo-nos do Otto? Isso foi noutro jogo, em Manchester.”.
Enfim, duas versões de uma história que Artur Agostinho não pode desempatar. “Logo a seguir ao jogo, tive de ir para a sala de Imprensa, porque também estava a fazer a cobertura do Mundial para o jornal Record”, diz, realçando o espírito extraordinário que reinava: “Nunca vi outra selecção como aquela. Da equipa administrativa à equipa técnica, era tudo muito coeso. E o Otto Glória era um psicólogo extraordinário. Lia o jogo com muita facilidade, transmitia confiança. Era parecido com o Scolari ou não fossem os dois brasileiros…”
9. A SEQUELA
Agora, mais de quatro décadas depois, Portugal volta a defrontar a Coreia do Norte, num jogo decisivo. O que é que se pode esperar?
“Temos a obrigação de os conhecer melhor. Mas ainda assim é um adversário de um país onde o futebol é estranho. Talvez agora tenha jogadores mais altos, mas continua a fazer da velocidade a sua maior arma”, diz Jaime Graça, enquanto Hilário acredita que “Portugal pode chegar à final e até ganhar”.
Já Artur Agostinho não acredita que a Coreia do Norte esteja “à altura” da nossa selecção: “Creio que Portugal e o Brasil vão passar.” Com outro jogo épico?