Tal como no dia da revolução, a obra cinematográfica que leva o nome do militar que saiu de Santarém para derrubar a ditadura também desafiou os obstáculos de um tempo. A pandemia “atropelou” as filmagens, a estreia nas salas foi adiada, mas os condicionalismos colocados ao projeto inspirado pelo biógrafo António de Sousa Duarte permitiram amadurecer ideias e dar lastro à densidade psicológica do retratado e da narrativa. “Nunca tive tanto tempo para me dedicar a um filme”, admite Sérgio Graciano, 46 anos, realizador de Salgueiro Maia – O Implicado, que a VISÃO já viu e estreia no dia 14, poucos dias após o 30º aniversário da morte do militar que prendeu Marcelo Caetano.
O título é, de resto, todo um programa: “O objetivo é fazer justiça ao mais puro e dos militares de Abril, ele que não a teve em vida e acabou penalizado por recusar o poder e trair os seus ideais”, explica Sérgio. Num vaivém temporal constante, o enredo segue o percurso do capitão Salgueiro Maia, antes e depois do 25 de Abril, dando também espessura a outras figuras, episódios e contradições da revolução que quase se devorou a si própria e aos homens que a fizeram. Mas é a pele do “anti-herói”, as suas angústias existenciais, ânsias de verdade e pureza de ideais que emergem do quotidiano, das vivências na academia militar, da guerra colonial e da ressaca revolucionária.
Interpretado por Tomás Alves, cujas semelhanças com Salgueiro Maia chegam a arrepiar, o protagonista fetiche do 25 de Abril tem aqui, pela primeira vez, pleno direito a um retrato intimista e melancólico, espécie de viagem às raízes da sua educação, valentia e integridade. “Gosto muito de trabalhar os silêncios, as palavras que não se dizem, os olhares, o sentido do que se pensa e não se diz. Mas este filme, até pelas suas vicissitudes, permitiu-me outra liberdade poética”, assume Sérgio Graciano, que tem nas direções de atores e fotografia (Marco Medeiros e Miguel Manso) as costuras deste ensaio biográfico e ficcional que não é – fica o aviso – acessível a todos. “Sim, o filme exige background sobre o 25 de Abril e sobre os momentos-chave que se seguiram. É mais pesado, cheio de contrastes, introspetivo, o que ainda realça mais a força gigante do homem que foi Salgueiro Maia”, refere o realizador à VISÃO.
Na película, assumem extraordinário simbolismo as palavras, em jeito de interpelação ao futuro, deixadas pelo capitão de Abril. Primeiro, na guerra colonial, quando avisado por militar amigo para não se meter em conspirações: “Andamos a ter cuidado há anos. E olha onde viemos parar…”, responde Maia. Depois, o desassombrado “recado” que deixou no crepúsculo da existência, quando a doença já o massacrava. “Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo”, afirmou então. “Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir”. Talvez por isso, resume Sérgio Graciano, “o filme também desafia o País a pôr a mão na consciência em relação à forma como trata os heróis da democracia”.