Uma rock star intelectual, é um rótulo frequentemente aplicado a Yuval Noah Harari, o filósofo israelita que cruzou os muros demarcados da academia e, hoje, se faz ouvir na praça pública, transfigurado em guru recomendado por líderes como Barack Obama, Bill Gates e Mark Zuckerberg (o trio transformou o seu livro de estreia, Sapiens – História Breve da Humanidade, originalmente publicado em 2011, numa bíblia de cabeceira). Os seus dois livros editados até à data (ver caixa “Grandes números”) totalizam 13,5 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, e demonstram, exemplarmente, o impacto deste pensador no zeitgeist da época: fulminante como um meteoro. Porém, as únicas espécies ameaçadas de extinção por ele aparentam ser os volumes histórico-filosóficos bem-comportados, que sussurram baixinho as suas verdades.
Harari tem um posicionamento diferente: ataca as grandes questões com convicção e confiança, usa uma prosa clara e direta, como a de um pregador, não foge da provocação. O historiador manobra com agilidade toda uma massa de informação oriunda de disciplinas diferentes, e apresenta uma síntese ambiciosa. Uma tapeçaria liberta de nós, coerente, acessível, que oferece nada menos do que uma visão total da Humanidade – do seu passado, do seu futuro, do seu presente, e até do seu potencial desaparecimento. “Num mundo pejado de informação irrelevante, a lucidez dá-nos poder”, afirma logo às primeiras linhas do novo livro, 21 Lições para o Século XXI (edição Elsinore). “Como historiador, não consigo dar alimento e roupa às massas – mas posso tentar oferecer-lhes alguma clareza, contribuindo assim para pôr o mundo em pé de igualdade. Se isto permitir que mais algumas pessoas, por poucas que sejam, participem no debate sobre o futuro da nossa espécie, terei cumprido a minha missão.”
Bravo novo e velho mundo
Os leitores renderam-se como mariposas a este holofote por ele apontado, varrendo tanto o passado como o futuro da Humanidade. Recordem-se as razões: Em Sapiens, o autor percorreu cerca de 70 mil anos da História humana iniciada com a Revolução Cognitiva, passando pelas Revoluções Agrícola e Industrial, até chegar à atualidade tecnológica. Aqui, ele abordava, por exemplo, as potencialidades de eventuais “novos Frankenstein”, trazidas pela bioengenharia, pela engenharia ciborgue (seres que conjugam componentes orgânicos e inorgânicos, “como um humano com mãos biónicas”), pela criação de seres inorgânicos (programas de computador, vírus informáticos). Uma visão que reclamava estar já a acontecer: “De certa forma, quase todos nós somos biónicos nos dias que correm, uma vez que os nossos sentidos e funções naturais são complementados por aparelhos como óculos, pacemakers, próteses e mesmo computadores e telemóveis.”
Uns parágrafos à frente no ensaio, as questões já levantadas em Sapiens ecoam nas manchetes recentes: um mundo digitalizado que deixa pouco espaço para a privacidade, uma comunidade cujos elementos médicos são manipulados por empresas… Harari alvitra um cenário capaz de subverter a presente “igualdade básica entre todos os humanos”, no qual as classes sociais ricas poderiam ser “melhoradas”, transformadas em superciborgues, através de progressos tecnológicos e médicos aos quais os mais pobres não têm acesso… A esta possibilidade, que há uma década muitos considerariam um guião de série B ou uma aspiração inconfessável, Yuval Noah Harari chama uma possível “singularidade”, ou seja, um ponto em que todas as leis conhecidas da Natureza não existem – como o Big Bang.
Mas é essa outra frase, depurada em Sapiens, que alimenta, ainda hoje, parangonas: “Não é claro que a bioengenharia possa, realmente, ressuscitar os neandertais; mas pode, certamente, pôr fim ao Homo sapiens. Brincar com os nossos genes não vai, necessariamente, matar-nos. No entanto, poderíamos alterar o Homo sapiens de tal forma, que deixaríamos de sê-lo.” E, nesse caso, como é o futuro? Harari arregaçou as mangas e respondeu com um segundo best-seller, Homo Deus – História Breve do Amanhã (2015), no qual discorre sobre as próximas etapas da evolução humana. Aquela que emerge de um mundo onde os deuses foram substituídos pelo Homem, em que o ADN pode ser descodificado à distância de um tubo enviado pelo correio, em que os processos de decisão – dos mais simples aos mais complicados – passarão para as grandes empresas tecnológicas, esvaziando a Humanidade da sua autonomia e integrando-a numa “imensa rede global”.
Soberanos tecnológicos
Um mundo em que um gigante tecnológico, quando questionado sobre uma dúvida amorosa, poderá responder nos termos referidos por Yuval em Homo Deus: “E a Google dirá: ‘Bem, conheço-te desde que nasceste. Li todos os teus emails, gravei todas as tuas chamadas, sei quais são os teus filmes preferidos, conheço o teu ADN e todo o teu historial cardíaco. Tenho dados precisos sobre todos os teus encontros e, se quiseres, posso mostrar-te gráficos, ao segundo, do teu ritmo cardíaco, da tua tensão arterial e dos teus níveis de açúcar de cada vez que saíste com o João ou o Paulo.” O Homem é descodificado, mas as sociedades também se transformam profundamente na visão de Homo Deus: Harari postula que “os costumes liberais como as eleições democráticas tornar-se-ão obsoletos, porque a Google será capaz de expor as minhas opiniões políticas melhor do que eu”.
“Assim que a Google, o Facebook e outros algoritmos se transformarem em oráculos omniscientes, é bem possível que depois disso evoluam para agentes e, por fim, se transformem em soberanos.” É um cenário que reconhecemos da cultura popular. Este futuro abordado no segundo ensaio de Yuval Noah Harari revisita o Big Brother inventado por George Orwell (1903-1950) no romance distópico 1984 (originalmente publicado em 1949). E o autor não se coibiu de recorrer ao passado europeu para melhor caracterizar o papão presente: “Se não tivermos cuidado, podemos acabar num Estado policial à maneira de Orwell que vigia constantemente e controla não apenas as nossas ações, mas até mesmo tudo aquilo que acontece nos nossos corpos e o que está dentro das nossas cabeças. Basta pensar no que Estaline faria com sensores biométricos omnipresentes – e naquilo que Putin ainda poderá fazer.”
Porém, nas influências deste pensador israelita outro escritor tem mais peso: Aldous Huxley (1894-1963), inventor de uma distopia futurista cujos bebés são moldados geneticamente no clássico Admirável Mundo Novo (1932), e a que Yuval chamou “o livro mais profético do século XX”. As suas próprias profecias futuristas incluem “castas biológicas” e elites de super-humanos, massas desprezadas, seitas dedicadas ao tecno-humanismo, populismos baseados em governantes ignorantes, uma religião/ciência organizada em torno dos dados. “Segundo o Dataísmo, a Quinta Sinfonia de Beethoven, uma bolha de mercado bolsista e o vírus da gripe são apenas três padrões de fluxos de dados que podem ser analisados com recurso às mesmas ferramentas e conceitos básicos”, escreveu.
Reencontros e confissões
Para os leitores mais familiarizados com o universo do intelectual israelita, 21 Lições para o Século XXI (ver caixa “Estas lições não terminam com respostas simples”) proporciona um reencontro com velhos desafios e fantasmas, à maneira de um best of. Harari regressa ao controlo tecnológico, ao Dataísmo, à bifurcação biológica da espécie humana, ao esvaziamento do poder económico e político das sociedades face à escala tecnológica, aos futuros da espécie submetida à bioengenharia. “Viveremos na matriz, ou no Truman Show [o filme de 1998, com Jim Carrey, sobre um ator involuntário numa sitcom que acompanha toda a sua vida]. Feitas as contas, trata-se de uma simples questão empírica: se os algoritmos realmente compreenderem o que se passa connosco melhor do que nós próprios, a autoridade passa para as mãos deles”, refere. A estrutura do livro, 21 temas arrumados em cinco partes (O Desafio Tecnológico, O Desafio Político, Desespero e Esperança, Verdade, Resiliência), reforça a sensação de familiaridade e conforto, à maneira de um glossário “quitado”, que realça o tal sentido de missão pró-Humanidade.
Mas o facto é que Yuval Harari explora aqui outros temas, contemporâneos e omnipresentes: as fake news e o conceito de pós-verdade, o trumpismo, os nacionalismos, o terrorismo, a imigração, o Brexit, os filmes de ficção científica, as religiões, as escolhas individuais. E, talvez por estar tão confortavelmente instalado dentro do edifício teórico que erigiu, o autor permite-se, neste novo livro, abordar questões alicerçadas nas suas experiências pessoais.
Uma carta fora do baralho
Israelita nascido em Haifa, em 1976, Yuval narra assim a sua reação aos desafios patrióticos, ao debruçar-se sobre os nacionalismos: “Quando era adolescente em Israel, também eu fiquei fascinado com a promessa nacionalista de me tornar parte de algo maior do que eu próprio. Quis acreditar que, se desse a minha vida à nação, viveria para sempre na nação.” A mente inquisitiva, no entanto, começou a esmiuçar as glórias prometidas: “Alto. Se estiver morto, como é que posso ter a certeza de que estes miúdos estão mesmo a recitar poemas em minha honra? (…) Mais, aos 13 anos eu já sabia que o Universo tinha uns quantos milhares de milhões de anos e que, provavelmente, continuaria a existir durante outros tantos. Poderia eu esperar que Israel durasse tanto tempo? Filhos de Homo sapiens vestidos de branco recitarão poemas em minha honra, 200 milhões de anos depois? Havia qualquer coisa de estranho naquela conversa.” A ironia não ignora a vizinhança: “Se o leitor é palestiniano, não se sinta superior. É igualmente improvável que haja algum palestiniano daqui a 200 milhões de anos.” Mas, acrescenta, qualquer mamífero terá a mesma sorte…
O tema da perenidade da passagem humana pelo mundo serve-lhe para mencionar a tragédia familiar: “Em 1934, a minha avó Fanny emigrou para Jerusalém com os seus pais e duas irmãs, mas a maioria dos seus parentes ficou nas cidades de Chmielnik e Czestochowa, na Polónia. Alguns anos mais tarde, apareceram os nazis e chacinaram-nos a todos, até à última criança. (…) Tanto quanto sei, não deixaram para trás qualquer criação cultural – nem um poema, nem um diário, nem sequer uma lista de compras.” E há a surpreendente referência à meditação, que Harari defende poder amparar-nos numa “era de perplexidade, quando as velhas histórias faliram e ainda não emergiu uma nova narrativa que as substitua”. É, diz, a amplificação do “conselho mais antigo de todos os tempos”: “Conhece-te a ti mesmo.” É algo que o próprio começou a praticar aos 24 anos, quando era estudante em Oxford, começando com um curso de dez dias de meditação Vipassana, baseada nos ensinamentos budistas. Hoje, dedica duas horas diárias à meditação e faz longos retiros anuais, e abandonou o telemóvel no ano passado.
Antes de Yuval se ter transformado no “Harari” cujos ensaios criaram um fenómeno editorial – ou seja, venderam milhões, transformando os livros dedicados ao pensamento numa tendência –, ele era a antítese de uma rock star: académico discreto, óculos e calvície precoce, vegetariano, especialista em História Militar Medieval, professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. “A história não deveria ser apenas um entretenimento cultural, deveria fazer-nos pensar e preocupar-nos”, defendeu em entrevista, em 2016. Há quem lhe tenha chamado sensacionalista. Outros apontam-lhe a falta de precisão nas profecias grandiloquentes, quando fala em acontecimentos que poderão ocorrer “daqui a um século ou dois”. Ou ainda a cautela com que ele ressalva que o seu trabalho usa “especulação”, e que o futuro pode ser isto… ou algo completamente diferente. John Thornhill, editor responsável pela área de inovação no Financial Times, refere, por exemplo, que os “horizontes” de 21 Lições para o Século XXI aparentam ser “estranhamente limitados, apenas abordando ao de leve a Ásia e a África” – os centros onde está concentrada a grande maioria de Homo sapiens, as potências que reclamam o protagonismo no futuro imediato.
Mas o papão algorítmico espreita mais perto de casa, e é a ele que Yuval Noah Harari dedica, com toda a clareza, as últimas linhas: “Serão os algoritmos a decidir, por nós, quem somos e o que deveremos saber acerca de nós mesmos. Durante mais alguns anos ou décadas, ainda teremos escolha. Se fizermos o esforço, ainda conseguimos investigar quem realmente somos. Mas se queremos aproveitar esta oportunidade, o melhor é fazê-lo já.” E o trabalho de casa também passa por estas 21 Lições para o Século XXI.