Esta reportagem foi originalmente publicada na VISÃO 1314, de 10 de maio, dias antes de Salvador Sobral se apresentar no palco do Eurofestival e de regressar aos concertos com a sua banda, Alexander Search
Salvador Sobral: O que vamos tocar?
Ninguém lhe responde, e percebe-se porquê. Os outros quatro músicos que estão na sala, uma pequena assoalhada de cerca de nove metros quadrados com vista para os jardins da Gulbenkian, em Lisboa, ainda têm de pousar o material, montar os seus instrumentos, ligá-los. Joel Silva coloca o prato da bateria. Júlio Resende, que ocupa o centro da sala, liga o cabo do teclado, porque não vai apenas tocar piano. Daniel Neto monta os três pedais da guitarra. André Nascimento tem de se sentar no sofá, colocar o teclado no colo, o computador em cima de uma cadeira e o finger pad no banco do piano. As paredes da sala estão repletas de postais, fotografias, posters. Na mesinha ao lado, dois discos de vinil de Amália, comprados já no tempo dos euros, e um livro de poemas escolhidos de Alberto Caeiro. Salvador ajeita-se na ombreira da porta. Tem uma cadeira, onde se senta, e se olhar por cima do ombro direito, vê a pintura de Costa Pinheiro dos óculos de Fernando Pessoa. São parecidos com os óculos que ele usa quando se veste de Benjamin Cymbra, a personagem que encarna enquanto vocalista de Alexander Search, a banda que estás prestes a começar a ensaiar.
Ninguém responde à pergunta de Salvador, ninguém diz nada, mas Júlio começa a tocar agora que os instrumentos estão a postos. Entra a bateria de Joel, depois a guitarra de Daniel, faltam os sons eletrónicos de André. “We pass and dream”, canta Salvador. A sua voz tem força, emoção, ritmo. “Hope for the best and for the worst prepare.”
Esperar o melhor e estar preparado para o pior. É impossível ouvir a frase e não pensar se seria esse o seu estado de espírito em setembro, quando o cantor teve de parar tudo o que fazia e ser internado, à espera de um coração novo, que chegaria a 8 de dezembro. Onde isso já vai.
Salvador acelera, acelera muito, acelera muitíssimo. Os outros vão atrás, sorriso aberto. Imita o som de um trompete. Faz um rap. Inventa a letra. Daniel olha para Júlio, Júlio olha para Joel, Joel olha para Salvador. Olhares cúmplices. A sua voz está em grande forma. O resto da banda também. Há uma energia contagiante, uma empatia total. Nem se percebe bem como começam a tocar todos ao mesmo tempo sem ninguém fazer sinal. Divertem-se, e nunca tocam a mesma música da mesma forma, mesmo quando decidem que vão fazê-lo.
Júlio Resende: Conforme nos vamos conhecendo melhor, vamos ficando mais livres. A liberdade aprisiona-nos!
Este era o segundo ensaio de Alexander Search, com o qual Salvador Sobral, 28 anos, ia voltar aos palcos, a dia 18 de maio, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra. Trata-se de um projeto concebido por Júlio Resende, em que as letras das canções são poemas em inglês de Fernando Pessoa e em que cada músico se torna personagem, assumindo o nome de um heterónimo do poeta. Uma semana depois, nos Açores, Salvador Sobral apresenta-se em nome próprio, regressando ao disco de estreia, Excuse Me.
Salvador: É bom voltar ao palco com Alexander Search, porque me tira um bocadinho de pressão, de responsabilidade. Vai primeiro o tipo de óculos, o Benjamin, ver se o caminho está bom, e depois diz-me se eu posso ir…
Júlio: Estás em grande forma.
Salvador: Não, não. Eu é que sei.
Júlio: És como um tipo que está louco, diz que só ele é que sabe…
Aqui pelo meio faltam umas frases: “Vamos comer qualquer coisa”, disse Salvador, uma hora e meia depois de o ensaio ter começado. É, finalmente, primavera e escolheu-se uma esplanada. Juntou-se à mesa Ana Paulo, manager de Salvador Sobral e de Júlio Resende, e os seus dois filhos. O mais novo nasceu no mesmo mês em que o cantor teve de deixar os palcos. Chama-se… Salvador.
Faltavam não só umas frases mas também uma atuação: o cantor ia apresenta-se na final do Festival da Eurovisão naquele sábado, 12, onde cantou com Caetano Veloso. Foi a sua primeira aparição pública “assumida” (fez uma perninha “às escondidas” num concerto do grupo La Canalla, em Cádiz, e outra num show da irmã, Luísa Sobral, cerca de um mês antes). Foi um regresso antecipado em relação à data inicialmente prevista, com autorização médica, o que quer dizer que a recuperação não podia estar a correr melhor.
Salvador: Isso de cantar com o Caetano ainda é mais difícil… Houve um encontro em casa da Carminho, uma noite. Foi fantástico, ele é mesmo muito querido e simpático, fartou-se de tocar. Eu preferia não ir à Eurovisão um ano depois, confesso, porque estou no processo de tirar essa etiqueta. Mas faz sentido, claro. E cantar com o Caetano – interpretar Amar pelos Dois – é muito entusiasmante. apresentar uma música nova, Mano a Mano, que está lindíssima. Lindíssima se eu cantar bem, coisa que não sei se vou conseguir… Agora fico nervoso.
Quem o ouviu em dois ensaios sabe que não há razão para ficar nervoso. E diz-lho.
Salvador: A minha voz está a melhorar, sem dúvida. Sinto-me mais confiante, a arriscar mais, mas há coisas técnicas que ainda não consigo fazer como antes. Acho que quando parei estava no topo da minha forma vocal. Sentia que podia fazer tudo – tudo! – com a minha voz, e agora sinto imensas limitações. Mas há de passar. Gosto de pensar que antes não tinha nada a perder e agora tenho.
Tem?
Salvador: Antes, sentia que não tinha nada a perder porque podia morrer a qualquer momento e agora tenho uma vida nova e parece que é essa sensação… Não sei. Sei que é uma estupidez, porque agora é que não tenho nada a provar, não é? Ganhei a Eurovisão, agora é que eu devia sentir-me superconfiante, com o ego lá em cima. Mas não.
Júlio: Agora é relaxares.
Salvador: Mas agora as pessoas estão à espera, a ver o que eu vou fazer: “Será que ele é só aquela canção?”
Salvador Sobral não é só aquela canção, claro, nunca o foi, e não será preciso esperar pelo próximo disco para o confirmar: nos concertos com o seu trio – Júlio Resende (piano), André Rosinha (contrabaixo) e Bruno Pedroso (bateria) – haverá quatro canções novas a rodar. Na tournée programada para Espanha, Salvador está em pulgas para cantar um tema em basco, em San Sebastián. Adoraria também experimentar o francês, agora que Paris é o seu refúgio (“lá ninguém me conhece, posso andar à vontade na rua”), mas essa ideia deve ficar para o estúdio.
Ana Paulo: Vai haver um disco novo, mas pode não ser este ano. Se não for daqui a sete meses, é daqui a oito ou nove. Logo se vê…
Salvador: O disco está na minha cabeça, mas só vou gravar quando me sentir confortável. Gravar discos, sinceramente, não é algo de que goste muito. Do que eu gosto mesmo é de tocar ao vivo. Mas já tenho muitas músicas. Há canções do Júlio [Resende], canções minhas e do Leo [Aldrey], a da minha irmã, um tema em francês… E há uma canção linda com um poema do Gonçalo M. Tavares e música do Mário Laginha. Como diria o Chico Buarque [e começa a falar com sotaque brasileiro]: “Essa não vai passar na rádio. É uma flor!”
Brasil, América do Sul, a conversa segue para outras paragens. A seguir à Eurovisão, chegaram convites de locais tão longínquos como Rússia, Geórgia e República Checa, a que não foi possível dar resposta, conta Ana Paulo. Uma agência em Espanha trata agora das marcações dos espetáculos fora de Portugal. Onde gostaria Salvador de tocar? “Chile, Colômbia, Peru, Venezuela, Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai…”, responde ele, num espanhol perfeito. E sente-se capaz disso, fisicamente? “Ah sim, estou cheio de força e de energia!”
Ana Paulo: Daqui a duas semanas, passado o barulho à volta da Eurovisão, vamos começar a perceber o que sobrou deste boom todo. E sobraram coisas muito boas, tenho a certeza. Recebemos imensas mensagens de pessoas que lhe agradecem porque foi através dele que descobriram outros músicos. No outro dia, uma miúda escreveu a dizer que tinha descoberto o Bernardo Sassetti porque o Salvador falou dele.
Salvador: A sério? Isso é incrível!
Ana Paulo: Só o facto de o disco mais vendido em Portugal em 2017 ser um disco de jazz [Excuse Me] já é fantástico.
A boa disposição de Salvador Sobral e do grupo é evidente. Brinca consigo próprio, é atencioso com a criança sentada à mesa, explica ao senhor do restaurante que o coração dele está ótimo e que pode beber café (“eu vi logo que era ele”, explicaria o senhor mais tarde, “mas não disse nada porque sei que ele não gosta de ser incomodado”; coisa que Salvador confirmaria: “Estou sempre a sentir-me observado, é horrível”). Desde que saiu do hospital, já esteve em França em Espanha; foi condecorado pelo Presidente da República com a Ordem de Mérito; voltou a frequentar o circuito notívago das jam sessions, onde começou, e onde diz que há gente nova muito boa. “Lisboa está a ferver de cultura!”, comenta.
Salvador: Há bocado, no ensaio, estávamos a falar de coisas triviais e de repente, pum!, começámos a tocar a partir do nada. Pensei: “Que giro, podermos fazer música todos juntos!” A mesma música, todos em sintonia, a tocar os mesmos acordes.
André Nascimento: Também já senti isso. Às vezes, quando estamos a ensaiar, falamos de coisas completamente diferentes e depois, de repente, a cena arranca.
Salvador: Vou divertir-me tanto com esta banda na estrada! Os meus planos agora são tocar, mostrar às pessoas a minha música, ir para Paris o mais possível, ler, ver tudo o que é bom cinema, passear, correr, aproveitar a minha boa saúde.