Depois de Altamira toda a arte é decadência’’. De uma pincelada, Pablo Picasso sintetizou para a eternidade o seu espanto depois de visitar a cueva, como lhe chamam os espanhóis. Em boa hora o génio da pintura o fez porque hoje, a menos que tivesse uma autorização especial, só conseguiria entrar em Altamira se tivesse a sorte de ser um dos cinco sorteados que, semanalmente, são brindados com a visita à gruta, próxima de Santillana del Mar, a 30 quilómetros de Santander, capital da verdejante região da Cantábria. Foi esta a forma encontrada, em março do ano passado, pelos responsáveis do Museu Nacional e Centro de Investigação de Altamira para manter as grutas abertas ao público sem contribuir para a progressiva degradação que as galerias sofreram entre 1924, quando a gruta foi classificada pelo governo espanhol como monumento nacional, e 1977, ano em que, definitivamente, deixou de ser possível suportar as cerca de 180 mil visitas anuais. Hoje o que está disponível ao público é um museu com uma exposição permanente sobre “os tempos de Altamira” e uma réplica da gruta original. A NeoCueva é uma reprodução tridimensional mas bastante rigorosa e exata da gruta original e que permite ao visitante conhecer o habitat e a beleza da arte rupestre dos povos caçadores recoletores que a habitavam.
Não sendo uma experiência tão impactante como a visita à verdadeira gruta, declarada, em 1985, Património da Humanidade (pela UNESCO), a possibilidade de observar uma cópia muito fiel das pinturas do teto é motivo mais do que suficiente para visitar o museu e a NeoCueva, inaugurados em 2001.
Com cerca de 270 metros de comprimento, a gruta de Altamira é relativamente pequena quando comparada com outras. O que lhe permitiu uma excelente e rara preservação ao longo de vários milénios foi o facto de a entrada natural ter ficado obstruída por um desabamento parcial do teto que terá ocorrido há cerca de 13 mil anos. Até a um belo dia de 1868, quando um caçador, para ajudar a libertar o seu cão preso entre duas rochas, encontrou o acesso àquela que parecia ser apenas mais uma caverna, das muitas que se encontram na região. Para os especialistas de hoje, o que lhe confere um lugar apenas comparável ao das pinturas da gruta de Lascaux, em França, é o aproveitamento das irregularidades e as formas da própria superfície do teto da cavidade, com o intuito de conferir volume, profundidade e animação às representações, bem como o realismo e cuidado colocado no detalhe das figuras, o domínio total dos pigmentos (carvão vegetal e ocre de várias tonalidades) e as técnicas empregues na sua aplicação. Os mais antigos vestígios de presença humana na gruta podem datar do período Aurignaciano (há cerca de 35 mil anos).
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Fine Art
ceticismo científico
Mas até chegar a esse reconhecimento público, a história de Altamira foi bastante atribulada. Quando, em 1879, Marcelino Sanz de Sautuola, ilustre advogado de Santander apaixonado pelas ciências naturais, e a pequena filha Maria, apreciaram pela primeira vez as pinturas policromáticas representando animais, como bisontes e cervos, com um nível de perfeição de traço e técnica impensável, até então, para tempos pré-históricos, não demorou a estalar a polémica. “A descoberta começou por ser olhada com muito ceticismo. Foi mesmo rejeitada pela chamada ciência oficial e conduziria a mais de duas décadas de controvérsia sobre a existência ou não de uma arte tão elaborada nos tempos paleolíticos”, explica à VISÃO António Martinho Baptista, coordenador do Parque Arqueológico e Museu do Côa.
Uma polémica que só terminaria em 1902, com a publicação de um artigo do francês Émile Cartailhac (Mea Culpa d’un Sceptique), talvez o mais prestigiado pré-historiador de então e cujo ceticismo inicial se tinha gradualmente desvanecido. “Esse artigo tornar-se-ia mesmo um exemplo, hoje clássico, da humildade científica que deve presidir a todas as investigações sobre o nosso passado pré-histórico, particularmente o mais remoto”, acrescenta o arqueólogo português.
Curiosamente, a polémica sobre o reconhecimento da arte paleolítica de Altamira, cronologicamente datável em grande parte do período Magdalenense (Paleolítico superior final, mais ou menos há 15 mil anos) encontra paralelo com a que envolveu as gravuras rupestres ao ar livre de Foz Côa. Também nesse ano de 1995, recorda António Martinho Baptista, “muita gente tentou demonstrar, contra todas as evidências arqueológicas, que a arte do Côa não seria de tempos paleolíticos”. A diferença é que, no caso português, “não foram necessários tantos anos para que o reconhecimento da grande antiguidade e qualidade estética das gravuras se impusessem, já que no Côa a chamada ciência oficial nunca teve grandes dúvidas sobre a sua autenticidade”.
Mas para Marcelino Sanz de Sautuola, porém, a retratação de Cartailhac chegou tarde e já não o apanhou em vida. De resto, o filme de Hugh Hudson, que não foi propriamente um caso de sucesso em Espanha desde que ali estreou em abril passado, aproveita também para funcionar como uma espécie de exaltação e recuperação da figura do fidalgo santanderino. Ou não fosse ele o bisavô do recentemente falecido banqueiro Emílio Botín (que sucedeu ao seu pai como presidente do poderoso Banco Santander), cuja Fundação, a par do governo espanhol e do governo da Cantábria, financiaram a película, uma superprodução de 10 milhões de euros que estreou em 235 salas de cinema espanholas. Altamira, o filme, nasceu por isso para ser, também (ou sobretudo) uma poderosa máquina de promoção internacional de uma região e seu património. Foi até rodado em inglês, coisa rara, para não dizer inédita, numa produção maioritariamente espanhola, para mais depressa atingir esse efeito. Mas nas primeiras três semanas de exibição no país vizinho só conseguiu um milhão de euros de bilheteira e talvez não consiga de forma tão espetacular os efeitos pretendidos pelo responsável do Turismo da região que, no dia da estreia, dizia ao diário digital El Español: “Confio nas capacidades deste filme para contar a Cantábria, que este verão se vai destacar no turismo em Espanha”. Com filme ou sem ele, a verdade é que Altamira merece mesmo uma visita de todos os que se interessam pelos seus mais remotos antepassados.
Uma visita quase real
Desde março de 2015 que o acesso à gruta original está fortemente controlado e limitado. Agora só há uma visita por semana para um grupo de cinco pessoas às sextas-feiras e a seleção é feita através de um sorteio realizado às 10h40 no hall do museu entre os visitantes desse dia. A visita dura 37 minutos e é feita segundo um rigoroso protocolo de indumentária e iluminação e com tempos definidos de permanência em cada galeria.
Mas, caso não se tenha a sorte de ser um dos contemplados com a visita à gruta original, o Museu oferece a possibilidade de observar a NeoCueva, ou nova gruta, que é uma réplica muito rigorosa da original, com destaque, claro, para as pinturas do teto, o motivo principal de atração de Altamira.
Horário
maio a outubro, terça a sábado 9h30-20h, domingo e feriados 9h30-15h
novembro a abril, terça a sábado 9h30-18h, domingo e feriados 9h30-15h
Preço: €3