Generalizou-se a expressão Festivais de Rock, mesmo quando o rock é neles uma presença diluída, quase homeopática. Este ano, nenhum festival, além do Super Bock Super Rock, pode chamar a si com mais justiça esse estatuto. Afinal, Iggy Pop estava ali, à nossa frente. Ícone absoluto do rock. Aos 69 anos, transporta ainda bem viva a herança do lado mais cru, selvagem e excitante do rock. Tão depressa todo o espectáculo de Iggy Pop, em palco e junto do público, parece absolutamente genuíno como uma espécie de homenagem ao seu próprio passado, gestos, trejeitos, repetidos noite após noite, recriação em loop de si próprio. Mas, na verdade está lá tudo o que conta: o som certo das guitarras, baixo e bateria, o protagonista certo, de calças negras de ganga coçadas, tronco nu, veias salientes. O arranque foi avassalador, recuando ao tempo dos Stooges: No Fun e I Wanna Be Your Dog. E não façam confusão: I Wanna Be Your Dog, que ainda hoje evoca toda a urgência e poder do rock, foi gravada há 47 anos, quando a grande maioria dos que estavam presentes na Meo Arena na noite de 15 de julho, não era sequer um projecto… Segue-se The Passenger, que evoca tempos de proximidade com David Bowie, e Lust for Life. Já era óbvio que o novo álbum, Post Pop Depression, feito com a cumplicidade de Josh Homme, não ia ser a prioridade ali (só tocaria Sunday, já em encore). Para quem acredita no rock, há, pois, algo de religioso naquele velho homem que salta e corre pelo palco, cospe para o público e pede para, simplesmente, gritarmos “Fuck! Fuck! Fuck!”. Nas filas de frente, há quem o venere mas também quem abra os olhos de espanto, com risos de gozo à mistura, sempre de telemóvel em riste. Compreende-se bem que, com estas máquinas tão portáteis à mão e grandes concertos à nossa frente, não se resista a um ou outro registo, o que é mais difícil de compreender é a tendência de virar a objectiva para o lado de cá, ignorando o palco e aproveitando um concerto de Iggy Pop para mais umas selfies sorridentes… Este é o mesmo público ensimesmado que cada vez bate menos palmas entre canções (uma novidade, já que o público português é conhecido por ser bem efusivo). Depois, de Mass Production e uma saída de palco dos músicos que parecia mesmo servir só para antecipar os encores, poucos eram os que chamavam realmente pela banda. O mosh, que há uns anos seria o ambiente natural na frente de palco de um Iggy decidido a revisitar o Raw Power dos Stooges, parecia incomodar os tiradores de selfies e, na verdade, só chegaria, a sério, com a última canção da noite, a explosiva Search and Destroy. Foi gravada há 43 anos, ainda ilumina o futuro de quem acredita que o rock é imortal.
Há 30 ou 40 anos, juntar, na mesma noite, um concerto de Iggy Pop e o de uma banda vagamente próxima, à época, ao que os Massive Attack fazem, seria uma ideia louca e suicida. Mas no actual modelo de festivais, essas misturas já são regra e o público está cada vez menos preso a tribos, fechado num só estilo. Aliás, uma boa parte do público destes festivais parece mesmo alheado a qualquer estilo e aos músicos no cartaz de cada noite. Ir a um festival de verão é, para alguns, como ir a uma qualquer festa de verão algures no Algarve. Nada contra aproveitar estes dias para pôr a conversa em dia, mas tudo contra fazer isso a escassos centímetros dos ouvidos de quem quer fruir um concerto e não nos numerosos espaços comuns cuidadosamente decorados por patrocinadores… Escolher um concerto de Massive Attack para o fazer é uma péssima ideia, até tecnicamente: é preciso gritar muito alto para garantir eficácia no diálogo. Não resisti mais: “Por favor! Isto é um concerto, sabem?!”. Olharam para mim como se fizesse o mais absurdo dos pedidos, como se pedisse para abrirem espaço porque me apetecia jogar golfe. Creio que não tinham muitos argumentos para rebater o meu argumento essencial (“Isto é um concerto!”) e por isso ficaram em silêncio; mas acho que só fui bem sucedido porque tiveram algum medo do “louco” que pedia silêncio para melhor ouvir o que vinha lá do palco, o que quer que fosse. E, na verdade, o excelente concerto dos Massive Attack convidava à imersão, perto ou longe do palco. Depois do rock, urgente mas sem tempo, de Iggy Pop, a banda de Bristol puxava-nos para a actualidade e desafiava-nos, como pouco se tem visto em concertos desta dimensão nestes contextos, a pensar. No extremo oposto do concerto de Iggy Pop, a performance física dos músicos (acompanhados, nesta noite, pelo trio escocês Young Fathers) apagava-se, a média luz, privilegiando a comunicação que vinha de um grande ecrã. Frases, questões, dúvidas fúteis ou essenciais, logótipos de marcas metralhadas à velocidade excessiva dos nossos dias… “Dedicado a todas as vítimas dos trágicos e incompreensíveis acontecimentos em Nice”, leu-se a certa altura. Também seriam homenageados os mortos de Paris, Orlando ou Bagdad. Com mais surpresa, a tentativa de golpe de Estado na Turquia, que se desenrolava nesses mesmos instantes, chegava também ao palco maior do Super Bock Super Rock, ilustrando da melhor maneira este imediatismo voraz em que vivemos, quase sem mediação. Outros acontecimentos recentes passaram por aquele ecrã, ao som de temas ora hipnóticos, ora enérgicos, em crescendo, mas a surpresa maior foi o aparecimento, misturando mundos e referências, como acontece nos rodapés das televisões, de frases de outro tipo de discurso dos media, como “Carolina Patrocínio sensual ao sol” ou “Luciana Abreu burlada”; ou a actualidade em direto, como na referência ao fenómeno Pokémon Go. Mas o que é que entusiasmou verdadeiramente o público? Boas velhas notícias: “Portugal campeão europeu”. Aí sim, o entusiasmo percorreu, bem audível, toda a imensa Meo Arena, eclipsando tragédias e futilidades.
Alguma mensagem o público (essa estranha entidade…) percebeu. E saiu, alegre, da Meo Arena a cantar em coro, mais uma vez, uma das mais originais e inesperadas palavras de ordem de 2016: “E foi o Éder que os fodeu! E foi o Éder que os fodeu!”. Bem-vindos ao presente.