Há três anos, nas páginas da VISÃO, “Ó Males sem Remédio” era o título, assumidamente dramático, tragicamente arcaico, do artigo dedicado ao filme
Mal
Nascida, tentando captar os gregos e funestos modos com que o realizador cosia os destinos de uma Electra transmontana que jurara vingar o assassinato do pai (Agaménon) e matar a mãe (Clitmnestra). Nesse filme, o terceiro de uma incompleta triologia (nunca chegou a filmar o filme do meio), Canijo procurou um Portugal ainda mais profundo do que aquele que já encontrara em
Noite
Escura (2003). Mais profundo do que os bares de alterne mafiosos de província, mais sórdido ainda, em aldeias de cafés húmidos, entre os pardieiros de azulejo, o alumínio e os concursos do Malato em ruído de fundo televisivo. Com
Fantasia
Lusitana, o documentário escolhido para a cerimónia de abertura do Indie (hoje, às 21 e 30), continuamos em sentido descendente, rumo aos abismos mais serôdios, cobertos de viscosidades, musgos e bolores do Portugal fascista, ao tempo da Segunda Guerra Mundial. Entalado lá no fundo, entre os interesses ingleses e a simpatia nazi, engalanava-se, “pobrete mas alegrete”, e se dizia, nas entoações untuosas dos locutores da época, festivo, luminoso e abençoadamente neutral. Aliás, em Mal Nascida, João Canijo já tinha colocado em epígrafe ao título a frase do filósofo José Gil: “Pior do que a ausência de forma é a arrogância de se julgar forma”. E na sua nota de intenções pessoal colocara a frase de um taxista português que enaltecia a gastronomia nacional e despeitava das estrangeiras: “Veja lá, que eles nem sabem o que é um caldo Knorr”. Portanto, este documentário que se intrometeu de forma um pouco acidental na filmografia do realizador, acaba por se cruzar num mesmo ponto. Construído todo ele com imagens de época, descrições de estrangeiros que por cá passaram e com as enfáticas locuções de época (o Jornal Português, as notícias que davam antes dos filmes foram, conta, um bom manancial), sem recurso à bengala das entrevistas a historiadores,
Fantasia
Lusitana começa justamente com este país em diminutivo que se insuflava de delirante orgulho. A primeira parte do filme está cheia de mocidades portuguesas, manifestações de homenagem a Salazar, “o homem que tem conservado Portugal afastado da fogueira da guerra”, “o Portugal pitoresco que ia à fonte encher a cantarinha” muito bailarico, muita festa e bandeirinha, muitos braços esticados – que se encolheram prudentemente depois da guerra, “deu-lhes uma artrose colectiva”, ironiza o realizador. Começa pela “fantasia”, explica. E só depois vem o sub-texto, que nos deixa tolhidos, como os tais braços, com uma espécie de artrite da memória, o que nos faz sair do cinema com uma desconfortável sensação de embaraço. Portugal era o único porto da Europa isento de conflito, plataforma giratória de refugiados e espiões. “Podem estar sossegadinhos” diz Vasco Santana a um bando de miúdos no filme de António Lopes Ribeiro, “que aqui não vos acontece nada”. Entre o elogio à cebola “alimento, condimento e medicamento”, os discursos de Salazar e o delírio da exposição do Mundo Português, onde se exibiam leões e “pretinhos”, o “sorriso pálido” com que os refugiados olhavam para este país festivo mas de pés descalços. Que na palavras de pessoas famosas que por aqui passaram, como Saint-Exupéry ou a filha de Thomas Mann, se produzia ruído, calor e cuspo: “Cuspia-se para o chão em Lisboa sem nenhuma motivo”. “Ainda se cospe”, garante João Canijo. Continuamos o mesmo portugalinho de sempre, “é só fachada. Somos pobres, fraquinhos e sem educação. A história de Portugal é feita de uma visão táctica, do momento. Nunca tivemos estratégia. A capacidade de improviso do português acontece por simples falta de pensamento estratégico”. Até a pretensa estratégia de neutralidade de Salazar, pela qual muita peregrinação se fez a Fátima e até um Cristo-Rei se erigiu na margem Sul, “foi o seu espírito seminarista de se safar pelo meio. A história da neutralidade é um mito, outra fantasia, não foi obra de Salazar, antes uma utilização muito habilidosa das forças beligerantes a quem dava um jeitaço ter um porto neutral na Europa”. Quando em 2001, filmava
Ganhar a Vida, num bairro periférico de Paris, o líder do gangue local abeirou-se dele. Queria saber sobre o que era o filme. Para despachar o assunto João Canijo respondeu-lhe: “É sobre a Antígona”. E o “delinquente magrebino, que daí a uns anos andaria a incendiar carros respondeu”: ‘Ah, Racine'”. Ainda somos produto de uma falta de educação crónica, comenta Canijo, que atribuiu muita da “culpa à Igreja Católica. “Ó Males sem remédio”. “Ó fatais golpes sacrílegos”.
Encontro imediático com João Canijo: Fantasia Lusitana -Ó Males sem Remédio Parte 2

Um país que produzia calor, ruído e cuspo - era assim que os estrangeiros nos viam ao tempo da segunda guerra, quando Salazar os abrigava debaixo da sua pretensa asa neutral. "E ainda cuspimos muito para o chão", garante Canijo.