Façamos o exercício de imaginação que se impõe. Recuemos 90 mil anos no calendário e situemo-nos na gruta da Figueira Brava, ao lado do Portinho, em plena serra da Arrábida, numa pequena sala protegida e com vista privilegiada para o oceano. O mar estará recuado cerca de 1,5 quilómetros, mas a restante paisagem não se desviará muito do que hoje se avista dali.
Nessa reentrância naturalmente escavada na rocha, viverá um grupo de homens do Neandertal do Paleolítico Médio. Cheira a brasa e a comida. Há sapateiras gordas, de um quilo, a acabar de cozer no fogo. Os utensílios de pedra foram preparados para lhes partir a carapaça e as tenazes e assim se poderem aceder à carne saborosa. Está montada uma refeição ao género do século XXI. Mas isso eles não sabiam.
Nem eles nem a equipa de arqueólogos que partiu, em 2010, para o terreno, com o intuito de explorar a zona, tirando amostras para datar melhor o sítio, na busca de mais provas da presença Neandertal por aquelas bandas. Já nos anos 1980 tinha havido escavações que atestavam essa ocupação há 90 mil anos.
Mal começaram os trabalhos de prospeção, saltaram pinças, logo identificadas como pertencendo a sapateiras. E, imaginamos, alguém há de ter puxado de um telemóvel, tirado muitas fotografias com má resolução e gritado: “Eureka!”

Eureka porque esta descoberta representa mais uma acha para a fogueira da discussão em torno do estado de desenvolvimento do homem de Neandertal, durante anos relegado para um canto com orelhas de burro.
Este achado português foi de tal maneira importante para a comunidade arqueóloga internacional que, dez anos depois, estava publicado, em exclusivo, na prestigiada revista Science, mesmo que não passassem ainda de resultados preliminares.
Este mês, a equipa da arqueóloga Mariana Nabais – que trabalha no Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social, em Tarragona – e de João Zilhão, em conjunto com a francesa Chaterine Dupont, puderam publicar na Frontiers in Environmental Archaeology o follow up desse paper de 2020. Agora, a equipa já elaborou o estudo detalhado das marcas que provam como as sapateiras foram apanhadas e consumidas pelos neandertais presentes no território.
“Desde logo, pelas fraturas nas pinças percebeu-se que eram partidas da mesma forma que hoje o fazemos, e os vestígios de queimaduras a 300/500 graus centígrados comprovam que eram cozinhadas na brasa e consumidas a seguir”, clarifica Mariana Nabais, a autora principal da publicação.
Esta foi a primeira vez que se estudou um conjunto de caranguejos da época Neandertal. Estes bichos estavam normalmente debaixo de água e, por isso, os seus vestígios são tão difíceis de encontrar, sobretudo por causa da subida do nível do mar aos longo dos séculos.
Então, esta é mais uma prova de que a população ali residente teria de saber alguma coisa de marés, pois só conseguiria caçá-los vivos quando eles se aproximavam da costa e ficavam presos nas pequenas poças que se formavam na maré baixa.
Como nunca ninguém se tinha debruçado sobre estes animais, a equipa de investigação teve de seguir os padrões de fraturação vigentes para as conchas. Entretanto, para provar que essa transferência de padrão estava adequado, os arqueólogos compraram sapateiras das mesmas dimensões que as encontradas, acenderam as brasas, cozinharam-nas e partiram-nas com utensílios como os da época em estudo. Todas as conclusões a que haviam chegado se confirmaram – e esta experiência está descrita num novo paper já submetido às revistas científicas, aguardando publicação.

“Existe um grande debate relativamente aos neandertais. Desde há anos que lhes são atribuídas características de brutalidade e de incapacidade em relação a certas atividades. É certo que eram hominídeos, mas não se limitavam a caçar mamutes, como os estudos da Europa do Norte (onde geralmente há mais dinheiro para este tipo de investigação) têm sugerido ao longo dos tempos”, explica a arqueóloga.
Desde que se fazem escavações no sul da Europa, percebeu-se que essa era uma ideia bastante limitada. Felizmente, e graças a investigações como esta em Portugal, a imagem dos homens de Neandertal está a ser reabilitada. “Sabe-se agora que produziam arte, utilizavam adornos, comiam algum peixe e conchas. No fundo, tinham comportamentos muito aproximados ao do Homo sapiens”, conclui. Ou seja, ainda há código genético Neandertal em todos nós.