Milhares de desalojados, mais de uma centena de mortos e dezenas de feridos. As condições de segurança na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, têm-se agravado, com várias organizações internacionais a ter dificuldades para prestar apoio às populações, numa altura em que o transporte por terra se tornou demasiado perigoso, revelam várias fontes ouvidas pela VISÃO. O transporte aéreo tem sido a solução, mas nem sempre é possível fazer chegar a ajuda humanitária, atualmente tão necessária, aos milhares de famílias que têm ficado sem casa, sem terra e sem segurança.
Desde outubro de 2017 que violentos ataques têm sido perpetrados por grupos armados com alegadas ligações ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Ainda esta semana uma religiosa da congregação das irmãs de São José de Chambéry referia, na página oficial da instituição, que em recente visita a Moçambique foi possível ver as feridas deste conflito que ainda não dá sinais de acalmia.
“Pelo caminho até Mocímboa da Praia, nossos olhos viram as marcas da destruição do ciclone Kenneth e dos ataques por grupos armados. Por várias vezes fomos paradas pelos militares que controlam a estrada. Há dois anos esta região norte de Moçambique vive num clima de medo e de insegurança por poderes ocultos que querem impor os seus próprios interesses, matando pessoas, incendiando aldeias e semeando destruição por toda parte” escreveu a irmã Ir. Katia Rejane Sassi. A congregação tem presença no norte de Moçambique há já vários anos, e trabalha junto das comunidades mais desfavorecidas.
No mesmo sentido, o Programa Alimentar Mundial (PAM), que tem estado presente no terreno há vários anos, e que intensificou a sua missão depois de o ciclone Kenneth ter atingido a região, em abril deste ano, alerta para o facto de que entre agosto e outubro deste ano prestou assistência a mais de 67 mil pessoas cujo acesso a alimentos é muito residual. No mais recente relatório de missão, o PAM garante que “os grupos mais vulneráveis, incluindo as pessoas deslocadas no norte do país, vão continuar a receber ajuda alimentar incondicional” até a situação melhorar.
O Daesh tem estado a ganhar terreno em África, mas são poucos os especialistas e analistas que consideram credível que haja um envolvimento genuíno do grupo terrorista nos ataques em Moçambique, havendo sinais de que poderá estar apenas a acompanhar o desenvolvimento destas atividades terroristas. Ainda assim, não há para já outras desconfianças sólidas sobre a quem poderá pertencer a autoria dos ataques que há dois anos provocam o pânico na região, que tem a maior taxa de iliteracia de Moçambique (ronda os 64%, mas sobe para 90% em cidades como Palma). Este território tem também uma elevada taxa de desemprego jovem e uma forte presença de tráfico de droga, armas, madeiras e jóias.
Recorde-se que em 1981, durante a presidência de Samora Machel, o chamado Conselho Islâmico “foi autorizado a receber financiamento da Arábia Saudita para avançar com a sua versão mais wahabita, mais salafista, do Islão. Obviamente, não colocando em causa o Estado moçambicano nem se metendo nas áreas seculares” do Estado, explicava o investigador Fernando Jorge Cardoso em declarações à Lusa, no início deste ano. “O que aconteceu neste Conselho Islâmico, que tem a supervisão do wahabismo, da corrente wahabita em Moçambique, foi que numa parte do conselho, particularmente representada por elementos mais jovens que tinham sido mandados estudar em madraças [escolas religiosas islâmicas] da Arábia Saudita e de outros países islâmicos, houve uma cisão. Isto aconteceu em 2000”, nota, salientando que a questão da violência não pode ser olhada sem o contexto histórico que a precede.
Esta “cisão”, segundo o mesmo investigador, levou à edificação no norte de Cabo Delgado de um conjunto de mesquitas, onde começou a ser pregada uma abordagem radical do Corão e da ‘sharia’, a lei islâmica. “Seis mesquitas começaram a pregar um islão muito mais radical e houve uma primeira sublevação, em 2010, por parte da população, que queimou uma dessas mesquitas, considerando que eram demasiado radicais”, explicou na mesma ocasião. Por isso, defende, “o Conselho Islâmico de Moçambique, o tal ramo mais wahabita, incentivou e continua a incentivar uma intervenção militar do Governo na zona”.
Abaixo, uma cronologia dos acontecimentos para que se perceba o que pode estar em causa.
Cronologia de um conflito que parece não ter fim
5 outubro 2017
O dia marcou os primeiros ataques de grupos armados totalmente desconhecidos na província de Cabo Delgado. Os alvos? Três postos da polícia em Mocímboa da Praia. O resultado? Cinco mortos. Em novembro, várias mesquitas foram encerradas por ordem das autoridades moçambicanas, que suspeitavam de ali terem havido reuniões de grupos armados.
Dezembro de 2017
Há novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, também em Mocímboa da Praia. Na primeira semana desse mês terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. A polícia, por seu lado, desmentia o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Janeiro a maio de 2018
Foi o ano horribilis da zona norte de Moçambique, com os ataques violentos a alastrarem-se a vários distritos da província de Cabo Delgado. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. No entanto, logo no dia 27 desse mês novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
2 de junho de 2018
Milhares de pessoas já tinham abandonado as suas casas e aldeias, com o medo a ganhar terreno, quando o canal televisivo STV anunciou que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano.
4 de junho de 2018
Os festejos em torno dos bons resultados das autoridades moçambicanas duraram muito pouco. A 4 e a 7 de junho as aldeias de Naunde e Namaluco foram incendiadas e, na sequência, sete pessoas morreram e outras ficaram feridas. Mais de 150 casas foram destruídas. A 22 de junho, um outro ataque à aldeia de Maganja matou 5 pessoas,
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois… Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas “insatisfações”.
Agosto de 2018
Apesar do desafio lançado por Filipe Nyusi, para que os oficiais promovidos do exército usassem a sua experiência para combater os grupos armados, dois ataques marcariam agosto do ano passado: ao todo morreram 6 pessoas, nos distritos de Palma e Macomia.
Setembro de 2018
Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam “jovens expulsos de casa pelos pais”.
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetia-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e matado três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW Moçambique David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que “depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles”.
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma. Abdul Rhamin Faizal, alegado líder dos insurgentes, natural do Uganda, foi preso pelas forças de segurança moçambicanas.
Fevereiro 2019
Sete homens foram mortos e desmembrados na aldeia de Piqueue, em Cabo Delgado. Na mesma ocasião, quatro mulheres foram raptadas.
Maio 2019
Depois de o ciclone Kenneth ter atingindo o norte de Moçambique, a 25 de abril, os ataques pareciam ter dados tréguas, mas duraram muito pouco. A 3 de maio houve mais ataques armados que destruíram Nacate, no distrito de Macomia, deixando seis mortos. Nas semanas seguintes várias vilas e aldeias foram saqueadas e incendiadas em Macomia. Os relatos de civis que abandonaram as suas casas começaram a aumentar. Pelo menos dois dos ataques tinham como alvos funcionários da Anadarko Petroleum, uma empresa norte-americana que está estabelecida em Cabo Delgado e se dedica à exploração de gás natural.
Junho 2019
No dia 4 de junho, 16 pessoas foram mortas e 12 ficaram feridas durante um ataque em Mocímboa da Praia. O autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) reivindicou este ataque embora haja dúvidas sobre a veracidade desta informação.
Julho 2019
Praticamente um mês depois, a 4 de julho, outro ataque no distrito de Nangade matou sete pessoas, entre elas um polícia. O Daesh reivindicaria a autoria do ataque três dias depois.
Setembro / outubro 2019
A 25 de setembro dois helicópteros MI-17 pertencentes ao governo russo foram entregues em Nacala, depois de os Executivos de Putin e Nyusi terem assinado um acordo de cooperação militar e técnica, ainda em janeiro de 2017.
Em outubro, Moçambique anunciou a detenção de 34 pessoas que viajavam para Cabo Delgado e que se suspeitava irem juntarem-se ao grupo insurgente com ligações ao Daesh a norte do país. Nesse mesmo mês, 27 pessoas (entre eles paramilitares e empreiteiros russos e 20 soldados moçambicanos) foram mortas por rebeldes durante duas emboscadas em Cabo Delgado.
Novembro 2019
Vários soldados da força paramilitar russa Wagner e soldados do governo moçambicano foram mortos num ataque cuja responsabilidade foi reivindicada pelo Daesh.
* com Lusa