Africa é o local ideal para um olhar inolvidável e ímpar, iminentemente intrínseco, marcado por uma indelével experiencia humana e cultural. As cores e odores intensos das especiarias vendidos nos Souks, o gosto do “thé vert” bebido com a quietude e prazer do momento, intensificam o descobrir de sensações, num ambiente onde a passagem do tempo nada mais é que o prolongar daquela experiencia de degustação.
Em Dezembro 2012, participei, com dois amigos, na Edição Dakar Desert Challenge (DDC 2012), uma aventura trans-sahariana, de conceito Low-cost e cariz não competitivo, onde o respeito pelas tradições e costumes locais é algo subjacente a uma aventura que pretende recriar os momentos marcantes e de contraste das pistas do mítico “Rally Paris-Dakar”, possibilitando a participação de vários tipos de veículos motorizados, numa experiência todo terreno pela Africa Ocidental única.
Como antropólogo da minha equipa (Equipa MC/MCMotor), em Land Rover Discovery 300 Tdi, e sem experiência de condução no traiçoeiro deserto ou de navegação por GPS/”Roadbook”, optei por não ser “um bravo destemido”, e concentrei-me numa “observação participante”, das várias culturas que experienciámos, saboreando cada momento como irrepetível e precioso num contacto privilegiado, porque consentido, com as populações.
Depois de Tanger, e de passarmos a noite em Marraquexe, deixámos a mítica Praça Jemaa El Fna para trás, com a sua via noturna e a Banca 22, onde jantámos, e dirigimo-nos através da costa atlântica em direcção ao litoral onde nos aprestamos para entrar na região do Sahara Ocidental, antigo território espanhol, hoje sob ocupação e controlo marroquino. É aqui que a realidade incómoda sobrevém e sussurrando na minha cabeça que para além da beleza, Marrocos, acarreta diferenças substanciais, quer sociais, quer evolutivas em termos da sua área geográfica.
Quanto a mim, observo, tomo notas, e a primeira coisa que é perceptível são os aquartelamentos militares que passamos em todas as cidades e aldeamentos, sinónimo da autoridade marroquina na região, com postos de controlo de velocidade (imperativo 60 km/hora) e documentação à entrada e saída das mesmas.
A população, no Sahara Ocidental, é bastante reservada, sem se furtar a contactos. Sorriem amavelmente, alguns perguntam-nos nas bombas de gasolina: “Rally, Rally?” Respondemos simpaticamente que sim, “Oui. Nous allons a Dakar”.
Mas, a uma pergunta minha tão sensível, quanto imprudente, confesso, o gasolineiro responde-me de forma curta mas cortês: ” Au Maroc, il ya la liberté, mais il ya deux sujets tabous: le Roi et le Sahara occidental.” Elucidativo!
Saímos do posto, pela estrada, seguimos o “Roadbook”, 200 metros à frente viramos à direita, finalmente o deserto em toda a sua plenitude: entramos numa pista sinalizada. Espaço aberto, vegetação escassa, areia, cascalho, pedra…e pistas, muitas pistas. Aceleramos o Land a fundo. O ambiente era de euforia e agitação. Pistas de deserto balizadas por pneus ou pequenos montes de terra do famoso “Rally Paris-Dakar”, fáceis e, tão imperiosas como
aconselháveis de seguir, pelo facto de marcarem os limites de segurança para além dos quais se pode pisar uma mina. É preciso não esquecer que estávamos em zona autónoma sem soberania legal definida da Frente Polisário ou República Árabe Saaráui Democrática, com um governo no exílio, proclamado em 27 de Fevereiro de 1976.
Atravessamos o famoso muro defensivo, feito de um monte compacto de areia, quilómetros a perder de vista no horizonte para ambos os lados, “carregamos” no acelerador rumo às regiões mais interiores do Sahara Ocidental, repletas de paisagens tão agrestes quanto sublimes, bivacando durante três etapas, incluindo a memorável passagem de ano com direito a musica, e efeitos de luzes, “featuring” DJ Filipe Grilo, sob o extraordinário e inolvidável firmamento do deserto africano.
A forte componente de entreajuda e companheirismo, que existiu entre os participantes a fim de se superar as dificuldades que foram surgindo ao longo das etapas é algo que marcou esta Edição do DDC 2012. O deserto é inclemente e o azar podia tocar a qualquer um, e nós sabíamos.
Talvez, a mais emblemática desventura desta expedição, foi o “milagre do Sahara ocidental” como ficou conhecido entre nós, a surpresa que o Rui Cabrita (Equipa TX4), pilotando uma V-Strom, teve ao embater numa pedra, abrindo um “senhor buraco” no cárter da mota, que todos (descrentes, lá está…) opinavam, sentenciavam e levavam ao desespero o Pedro Pereira, (Equipa RMS/Garmim), que com uma mestria única e uma placa de matrícula da Catalunha (Equipa FLTR) – sim, leram bem – cortou, moldou, soldou e colou com uma pasta especial, improvisando uma peça, colocou-se óleo e segue! O Rui chegou mesmo a Dakar.
Ao deixarmos a fronteira de Marrocos para trás, entramos num mundo surreal em direção ao posto fronteiriço da Mauritânia. Estamos na chamada “terra de ninguém” ou “Kandahar”, como lhe chamam os mauris, três quilómetros de caos, carcaças de carros, pedaços de peças, uns pilhados, desmontados, outros visivelmente vítimas de minas, pois toda a área circundante está repleta delas. Nada a temer, desde que sigamos sempre em frente em bom ritmo e tomemos a torre de comunicação como referência.
Naquela fronteira mauritana constituída de barracões decadentes, sendo um eufemismo chamar-lhe “posto fronteiriço”, esperamos 2 horas de “formalidades” para se obter um carimbo ou dois, para seguirmos viagem acompanhados da nossa escolta oficial, soldados com AK-47, mais conhecida por kalashnikov, nas suas “Pick-Ups”, entrando num quadro surrealista que oscila entre o belo e o horrível.
No Senegal, porém, regras e trânsito também não combinam, fazendo de uma simples paragem na passadeira para dar passagem a um peão algo de irreal, pois sentimos que cometemos uma “contraordenação muito grave” do Código da Estrada local, dadas as buzinadelas e insultos que recebemos dos condutores…e do peão!
A falta de saneamento básico, infelizmente, continua a ser um problema sério nesta parte do país. A acumulação quase obsessiva de lixo pelas ruas, em especial plástico, que depois é queimado a céu aberto, deixando no ar um cheiro nocivo, torna-se por vezes difícil de suportar, dados os químicos que liberta.
Todavia, as pessoas são afáveis, riem, conversam, têm curiosidade sobre nós. Os mercados são coloridos, activos, populosos, onde o artesanato, os sons, as frutas, reflectem a jovialidade dos senegaleses.
A enorme quantidade de pessoas a fazer desporto, correr em especial, capta a minha atenção. Se o CR7 fosse eleito por camisas vistas, no Senegal tinha ganho certamente. África no seu melhor.
A última etapa saiu do mítico Lac Rose onde estávamos alojados, lago este que deve a sua cor à presença de microrganismos e que tem uma concentração de sal de 300 g por litro. Localizado a uns escassos dois quilómetros do mar e da praia com cerca 20 quilómetros, local onde a organização do DDC 2012 decidiu iniciar a realização de uma última corrida simbólica rumo a Dakar.
Olhei para o relógio e marcava 13h25. Tínhamos chegado à legendária cidade de Dakar, ao fim de inúmeras aventuras e desventuras vividas ao longo de 14 longas etapas, momento vivido com grande emoção, e já com muitas saudades das pistas e da experiência cultural sentida durante esta inolvidável odisseia.
Aquela praia representava o fim de um enorme desafio por nós superado, após 4000 quilómetros, depois dela encontrava-se a “Meca” do todo o terreno. Sentimentos mistos abundavam. Entre abraços e fotografias, entre felicidade e nostalgia, bandeiras de Portugal, Holanda e Catalunha, apossou-se de todos os participantes que durante 3 semanas palmilharam lugares tão inóspitos e remotos, quanto belos e inspiradores da África Ocidental, a sensação impar de sentir: Dakar aqui tão perto…