Não são palavras bonitas as que ouvimos. Há violência, falta de afeto, rejeição, uma infância sacudida por uma vivência familiar conturbada. “Em Portugal, retiram-se crianças às famílias com uma grande facilidade, é uma situação ao mesmo tempo muito violenta e invisível. O conhecimento de como é o seu dia a dia está fora da esfera dos media”, nota Marco Martins.
O encenador e realizador já queria trabalhar com crianças que vivem em instituições de acolhimento, e foi a isso que se propôs quando recebeu o convite do festival irlandês Arts Over Borders para participar em Ulysses: European Odyssey 2022-2024. O projeto une 18 cidades de 16 países europeus através de produções artísticas sobre temas sociais e culturais identificados nos 18 capítulos do livro Ulisses, de James Joyce. O capítulo atribuído a Lisboa decorre num abrigo, e a Marco Martins coube refletir sobre questões intergeracionais e o envelhecimento da população.
Blooming é o resultado de cinco meses de trabalho, num edifício da antiga CUF, no Barreiro, que começou com conversas e workshops de movimento de corpo, teatro e música. Foi preciso construir uma relação com aquele grupo de meninas e meninos, entre os 12 e os 16 anos. Fátima, Halia, Ian e Liria vivem no Instituto dos Ferroviários naquele concelho; Caetano, o mais velho, foi escolhido num casting que decorreu numa escola. A eles, junta-se Robert Elliot, com quem Marco Martins já tinha trabalhado na peça Provisional Figures: “A sua história de vida tem muitos altos e baixos, vai desde as plataformas de petróleo a andar a consertar telhados ou a trabalhar numa reserva de pássaros. Queria alguém que fosse como eles, sem um olhar de julgamento, que lhes pudesse falar do que é ter 61 anos, do que é envelhecer e o que muda em ti”, diz o encenador.
Vivências pessoais, textos literários, letras de músicas, vídeos do TikTok, exercícios de ficção, tudo serviu à construção de Blooming, criado em conjunto depois das aulas e aos sábados. No livro de Joyce subsiste a ideia de voltar a casa. Mas para estas crianças, que perderam a sua casa de origem, o que significa esse regresso? Serão elas capazes de projetar o seu futuro, quando o presente é tão instável? Marco Martins tem uma certeza: “Há uma grande dificuldade em confiar nos adultos, e é essa a grande conquista deste espetáculo.”
Blooming > São Luiz Teatro Municipal > R. António Maria Cardoso 38, Lisboa > até 16 jun, qui-sáb e seg 20h, dom 17h30 > €12