Numa altura em que Hollywood elevou ao extremo um conjunto de quotas e prescrições que ambicionam corrigir, de modo fulminante, uma longa história de preconceito e discriminação racial e de género, somos surpreendidos com Nomadland – Sobreviver na América, uma obra que, de alguma forma, inverte ou complexifica essa lógica. A produção tem logo vários pontos a favor: o filme é realizado por uma mulher não branca, a chinesa Chloé Zhao, e protagonizado por outra mulher. Só que, ao contrário de Lee Isaac Chung – o realizador de origem coreana que, em Minari (a atriz Youn Yuh-Jung venceu na categoria de Melhor Actriz Secundária), revisita a história da chegada da sua família à América –, Zhao faz um filme longe das suas raízes, que reflete, acima de tudo, o seu fascínio pela cultura ocidental, que a levou a ir estudar para Inglaterra e EUA.
Nomadland venceu três Oscars: Melhor Filme, Melhor Realização (Chloé Zhao) e Melhor Atriz (Frances McDormand)
Nomadland lança um olhar perspicaz e poético sobre o que pejorativamente se costuma apelidar de white trash, centrando-se numa mulher de meia-idade que percorre a América, sobrevivendo à custa de trabalhos sazonais ou simplesmente temporários. Um estilo de vida ousado e despojado, mas que se afasta da ideia romântica de espírito de aventura à medida que a deriva se torna contínua. Quando se passa demasiado tempo na estrada, a estrada passa a ser um lugar. Mas a estrada, para Fern, também é um permanente ponto de fuga, de reação ao trauma e a uma inabilidade social.
Com todos estes elementos, Chloé faz um filme de notável densidade poética, que aproveita bem a riqueza da paisagem desértica da América profunda. E sobretudo tira o melhor partido de Frances McDormand, que já nos tinha deslumbrado recentemente em Três Cartazes à Beira da Estrada. A atriz consegue, através das marcas do seu rosto vulgar, transmitir a complexa profundidade de uma mulher vivida.
Veja o trailer do filme vencedor dos Oscars 2021
Nomadland – Sobreviver na América > De Chloé Zhao, com Frances McDormand, David Strathairn e Linda May, 107 min