Frankenstein mantém um fascínio duradouro, esse arremedo de homem criado artificialmente e que era uma manta de retalhos de partes anatómicas. Era uma criação inaceitável para os padrões moralistas e medrosos da época, algo que simbolizava igualmente os medos irracionais associados ao poder e aos limites da ciência. Mas o monstro inventado pela escritora Mary Shelley não está sozinho: a história, literatura e imaginação humanas, estão povoadas de estranhos seres que desafiaram o conhecimento.
Sereias? Tritões? Unicórnios? Ciclopes? Demónios? Mulheres peludas e homens-cão? Peixes exóticos? Estas são algumas das criaturas extraordinárias agora evocadas numa exposição que desafia o esquecido sentido do maravilhamento, e que propõe uma reflexão científica sobre o insólito. A Espantosa Variedade do Mundo, comissariada pelos docentes/investigadores Palmira Fontes da Costa (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova) e Adelino Cardoso (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), é, usando a linguagem contemporânea, um passeio por universos alternativos. E coloca-nos na posição semelhante aos dos naturalistas e entusiastas dos cabinets de curiosités dos séculos XVI e XVII (esses antepassados renascentistas dos museus): a observar, incrédulos, imagens e vitrines povoadas por seres que desafiam o conhecimento e a imaginação.
Mundo maravilhoso
Dentro do Padrão dos Descobrimentos, encontram-se objetos e obras de proveniências diversas organizados para recordarem o observador que o “mundo, natural e social, é fonte permanente de espanto”. Desde os modelos científicos às ilustrações medievais e às imagens de bactérias, esta mostra não esquece ainda que a literatura foi terreno fértil para criações cornucópicas, encontradas tanto na Odisseia de Homero como nas aventuras de Marco Pólo. E que a investigação científica, a partir do século XIX, desmistificou os “prodígios de outrora”, mas abriu portas a outras possibilidades…
Há, aqui, criaturas extraordinárias tanto nas estampas mostradas do Livre des merveilles, de Marco Polo, pertencente ao acervo da Bibliothéque Nationale de France, como no aquário que revela as estirpes de peixe-zebra utilizadas em investigações médicas, ou ainda no modelo 3D do esquema da Dupla Hélice do ADN.

Um pombo de duas cabeças, uma das muitas anomalias “monstruosas” encontradas na Natureza
Bibliothéque Nationale de France
A estranheza é igualmente suscitada pelo “peixe monstruoso”, encontrado nas margens do Tejo em 1748; pela representação do “famoso monstro de Cracóvia”, espécie de demónio que evidencia cabeças nas articulações (retirado de Histoires Prodigieuses, de Pierre Boaistuau, 1560); pelo Diabo do mar, descrito na obra de Ambroise Paré, médico real e cirurgião parisiense no século XVI; ou pelas várias referências surgidas em A dissertação sobre seres monstuosos de Domingos Vandelli (Coimbra, 1776).
No passado, o mundo era território incerto e os seus supostos limites inflamaram a fantasia humana: monstros terríveis estariam à espreita dos navegadores e exploradores. Veja-se a representação do Mapa-Múndi de Psalter, pertencente a um missal de meados do século XIII: Jerusalém está no centro de tudo, rodeado por margens de seres de várias espécies monstruosas. Ou a de O Livro de Crónicas (1800) uma das obras impressas com mais ilustrações da época, concebida como uma história do mundo desde a criação bíblica do mundo até ao século XV: o mapa aí apresentado é baseado no sistema de Ptolomeu, e não menciona partes de África, Extremo Oriente e Américas. Mas revela uma população de seres incríveis: um homem com vários braços, uma “mulher com pilosidades”, um homem com seis dedos, um centauro, uma figura humana que ostenta um bico no lugar do nariz.
À luz dos avanços atuais da medicina, percebemos ainda a perplexidade perante seres aparentemente fora da norma, como as gémeas siamesas Helena e Judith, exibidas em Londres, em 1708, como a “maior maravilha da natureza”. Em A Espantosa Variedade do Mundo, há o questionamento da relação com o Outro, diferente. Um tema refletido no futuro: os avanços da biologia e da medicina suscitaram novos espantos, as terapias genéticas, os avanços na robótica, as descobertas neurológicas, fazem-nos interrogar sobre que novos monstros poderão surgir. Até lá, pode-se entrar no Padrão dos Descobrimentos e sorrir perante o poster de Frankenstein, o filme de 1931, realizado por James Whale e com interpretação de Boris Karloff: está em boas companhias.
A Espantosa Variedade do Mundo > Padrão dos Descobrimentos > Av. Brasília, Lisboa > T. 21 303 1950 > 17 fev-3 jun, ter-dom 10h-18h > €4