Há uns meses, uma coruja magoada caiu literalmente nas mãos de Mariana Roldão. O maior receio da coordenadora do Serviço Educativo e Ambiente do Parque de Serralves era que o animal, depois de tratado, não conseguisse sobreviver. “Quando a libertei, junto ao Prado, ela emitiu um som, e rapidamente percebemos que não estava sozinha, porque todas as corujas à volta lhe responderam. Foi maravilhoso devolver-lhe a liberdade”, recorda a engenheira ambiental, que, todos os dias, se surpreende com um pisco-de-peito-ruivo a pousar-lhe na janela do seu gabinete, situado na zona sul, na antiga quinta agrícola do Mata-Sete.
Num passeio pelo Parque de Serralves – com 18 hectares (mais ou menos o equivalente a 18 campos de futebol) de jardins, matas e quintas, entre a Boavista e a Foz, no Porto –, podemos não ter a sorte de observar um guarda-rios a sobrevoar os céus ou uma salamandra-de-pintas-amarelas junto ao lago, mas ninguém ficará indiferente a toda a biodiversidade que brota neste lugar, nascido vai para 100 anos.
Assim que se deixa a Rua Dom João de Castro e se atravessam os portões de ferro com a inscrição “1999” – alusiva ao ano de abertura do Museu de Arte Contemporânea, obra de Álvaro Siza –, entra-se numa espécie de “bolha” dentro do perímetro urbano, que tem conseguido harmonizar a Natureza com a arte contemporânea e um projeto educativo.
Ainda que não se visitem as exposições no museu, um passeio pelo parque, por mais curto que seja, incluirá sempre a passagem por dezenas de obras que passaram a habitá-lo ao longo dos anos, entre castanheiros, pinheiros-mansos ou cedros-do-líbano. É o caso da icónica Colher de Jardineiro (2001), da dupla Claes Oldenburg/Coosje van Bruggen, do Espelho do Céu (2018), de Anish Kapoor ou, entre outras, da mesa com quatro bancos intitulada Para Uma Nova Cidade (2000), que Maria Nordman imaginou para a zona da quinta, junto à coleção de árvores Ginkgo biloba, debaixo das quais as crianças costumam dormir a sesta.
“É um lugar que esteve sempre à frente do tempo; abriu-se à inovação, à troca de cultura e de criatividade. Acho que isso fez toda a diferença”, resume Helena Freitas, bióloga e diretora do Parque de Serralves desde o início de 2022. Depois de a propriedade ter sido adquirida pelo Estado, em 1987, dando origem a uma fundação e, mais tarde, à abertura do Museu de Arte Contemporânea, nela têm vindo a nascer outros atrativos: a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (depósito e lugar de estudo do espólio do cineasta, inaugurado em 2019), um Treetop Walk (passadiço de madeira ao nível da copa das árvores, 2019) e, já neste ano, a inauguração do Edifício Poente, a nova ala do museu que Siza Vieira desenhou para acolher em permanência toda a Coleção da Fundação de Serralves.
Partilhar histórias
O que é, hoje, Monumento Nacional nasceu a partir de um jardim romântico da Quinta do Lordelo, propriedade de uma família aristocrata da indústria têxtil, herdada em 1923 por Carlos Alberto Cabral, o segundo conde de Vizela (1895-1968). Como terá sido viver aqui, assistindo aos chás dançantes organizados pelo conde, na sua casa cor-de-rosa, o notável edifício art déco nascido da ampliação de uma antiga casa com capela, cuja autoria é atribuída ao arquiteto francês Charles Siclis, com o apoio do português José Marques da Silva? A pergunta virá à cabeça de qualquer um que caminhe pelo Bosque das Faias ou pela belíssima Alameda dos Liquidâmbares (nesta altura do ano, ainda com os troncos despidos de folhas), e se detenha junto à Casa de Serralves, a olhar para os lagos, fontes, canteiros e arbustos do Parterre Central, obra do arquiteto paisagista francês Jacques Gréber, nos anos 30 do século passado, a quem o conde de Vizela encomendou grande parte do traçado paisagístico que conhecemos atualmente.
“É notável como o parque tem sobrevivido desde o século XIX: à Primeira República, aos anos 20, a todo o período mais conturbado da Ditadura Militar, ao próprio 25 de Abril. E como este percurso histórico foi deixando marcas”, salienta a historiadora Maria Fernanda Rollo, que será a comissária do Centenário do Parque de Serralves (ver caixa com a programação) e a quem foi entregue o projeto Memória, eixo central das comemorações. Através de uma série de entrevistas e da recolha de testemunhos de quem visitou, trabalhou ou ainda trabalha no parque, será escrito um século de vida. “As pessoas são convidadas a partilhar as suas histórias e a trazer testemunhos (através de fotografias, desenhos, utensílios…), recordando o património associado ao da história oral. É uma viagem no tempo e de emoções, e de como esta Natureza tem vivido com as pessoas e as pessoas com ela”, aponta.
É notável como o parque tem sobrevivido desde o século XIX: à Primeira República, ao período mais conturbado da Ditadura Militar, ao próprio 25 de Abril
Maria Fernanda Rollo, HISTORIADORA
Além de ficarem disponíveis na plataforma Memória para Todos, os depoimentos em áudio e vídeo serão materializados em duas exposições – virtual (em junho) e física (em outubro) – e num livro. “É interessante perceber que o Porto está muito moldado por Serralves”, constata Maria Fernanda Rollo. “Não é só por estar aqui geograficamente, mas porque adquiriu a identidade do Porto, quer recuando às dinâmicas industriais do século XIX, quer depois à forma como se evoluiu para uma fundação apoiada por um grupo de mecenas, que acaba por agarrar este projeto. Da mesma maneira, faz sentido pensá-lo numa dinâmica internacional, pelas suas singularidades: na articulação com a arte, com o jardim, nas festas, nos jardineiros, nas crianças e na sua dimensão educativa”, sublinha.
O caminho é verde
À boleia das comemorações, uma série de requalificações ocorrerão neste parque centenário, a pensar tanto na sua preservação como na promoção ambiental. Já concluída, em julho deste ano, está a recuperação do Roseiral (dos anos 30 e 40), num projeto desenhado pelo arquiteto paisagista inglês Gerald Luckhurst. Para o restauro, plantaram-se 1 862 roseiras de 29 variedades, oriundas de diversos países europeus, com nomes como Charles de Gaulle, Chevy Chase ou Mildred Scheel, ou a portuguesa Santa Teresinha.
Na agenda dos próximos meses, constam o restauro do Jardim das Aromáticas, a partir de um projeto da sua mentora, Teresa Portela Marques; a construção de uma estufa junto à horta; e a plantação de nova vegetação junto ao lago, onde serão revistas as perdas no circuito de água, uma das maiores preocupações da atual diretora do parque, que pretende tornar todo o circuito mais eficiente. “Ter uma estratégia para a água, tal como para a energia, é o grande desafio desta década”, assume a bióloga e investigadora Helena Freitas. Um dos exemplos é o charco construído em 2021, a pensar quer nos anfíbios e em espécies em vias de extinção, como os nenúfares do Baixo Mondego, quer na criação de zonas húmidas, que ajudam ao arrefecimento da cidade.
O novo edifício do museu [o polo poente] já terá energia renovável, mas temos de ir mais longe
Helena Freitas, diretora do Parque de Serralves
No campo da energia, “a estratégia é alinhar a nossa prestação com o roteiro para a neutralidade carbónica do País, percebendo de que forma podemos ser parceiros”, continua Helena Freitas. “O novo edifício do museu [o polo poente] já terá energia renovável, mas temos de ir mais longe. Serralves poderia integrar as comunidades energéticas, idealmente com o bairro envolvente, que não é tão favorecido.” Mas há outros passos neste caminho para a sustentabilidade.
A somar à criação de um Laboratório de Biologia e Comunicação de Plantas, junto ao celeiro da quinta, “para que as crianças possam fazer ciência”, será lançada uma Plataforma da Biodiversidade, que vai reunir o inventário do Parque de Serralves: dez mil exemplares de mais de 200 espécies entre árvores e arbustos, além de centenas de animais, como aves (a tal coruja-do-mato, com que iniciámos este texto, ou a águia-de-asa-redonda, o guarda-rios, o mocho-galego…), anfíbios (salamandra-de-pintas-amarelas, sapo-parteiro, tritão-de-ventre-laranja), borboletas, répteis e até morcegos.
Cuidar da casa
Entre araucárias, sequoias e camélias, erguem-se castanheiros, carvalhos-alvarinhos, eucaliptos de grande porte, mas também arbustos autóctones, como azevinhos, pilriteiros e medronheiros, “que ajudam à promoção da biodiversidade e criam abrigos para os pequenos mamíferos ou são indispensáveis para a polinização”, exemplica Ricardo Bravo, arquiteto paisagista e coordenador do Serviço de Manutenção e Gestão do parque.
Peça fundamental deste ecossistema é a equipa de 11 jardineiros, que, entre podar as árvores e tratar das sementeiras e das limpezas, tem sempre muito que fazer todos os dias. “Tem sido um privilégio trabalhar aqui. É o pulmão da nossa cidade”, confessa Paula Monteiro, 48 anos, jardineira do parque há 23 anos, que se divide entre a horta e os animais, ou entre a mata e o Parterre. Recentemente, por forma a garantir maior conforto a esta equipa, foi construída a Casa dos Jardineiros, também desenhada por Siza, a partir da recuperação de um antigo armazém de máquinas, próximo do Treetop Walk (obra conjunta de Siza Vieira e do arquiteto Carlos Castanheira).
Laboratório vivo
Também a quinta assume um papel relevante na promoção da componente educativa e ambiental. “Há escolas que não têm um recreio ao ar livre e usam o parque para uma leitura da Natureza”, conta Mariana Roldão. Além de poderem plantar e colher legumes da horta (cada instituição de ensino tem um talhão próprio), as crianças contactam com os animais de raça autóctone que pastam no prado: há um rebanho de cerca de 30 ovelhas de raça bordaleira, dois burros mirandeses, quatro vacas (barrosã, arouquesa, marinhoa e jarmelista), uma porca bísara e galinhas. “É um laboratório vivo”, compara a coordenadora do Serviço Educativo, cujos projetos têm abrangido diversas faixas etárias, da infância aos seniores, e até mesmo aos estabelecimentos prisionais de Custoias e de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos.
Pelo contributo fundamental que estes 18 hectares têm para a sociedade, Helena Freitas não esconde, pois, a vontade de ver o Parque de Serralves classificado como Património Mundial da UNESCO. “Tem todas as condições, porque a sua história merece ser contada. A própria cidade tem esse respeito por uma entidade que nasceu num tempo e soube manter uma matriz de qualidade e modernidade com a relação da malha humana. Provavelmente, no mundo, não haverá muitos exemplos destes”, considera a diretora do parque. Que venham mais 100 anos!
Celebrar o centenário
A programação do Centenário do Parque de Serralves (1923-2023) passará, sobretudo, por evocar memórias que tracem a linha da sua história até às décadas mais recentes. Sob a condução de Maria Fernanda Rolla, comissária das comemorações, serão recolhidos vários testemunhos (até maio) de quem tem histórias para contar sobre o parque, que darão origem a uma exposição – primeiro, em formato virtual (15 de junho) e, depois, em suporte físico (17 de outubro). Concertos sob a temática do parque (Fernando Mota, 25 mar; Banda Sinfónica Portuguesa, 14 jul, 23 set, 2 dez), uma exposição do escultor Paulo Neves (jul-set) e uma conferência sobre a “Importância do Restauro” (14 e 18 mai, 26 out), em parceria com a Associação Portuguesa dos Jardins Históricos, estão incluídos no programa, no ano em que regressam o Serralves em Festa (2-4 jun) e o BioBlitz (8-14 mai). O centenário será ainda assinalado com o lançamento do livro de fotografia 365 Dias do Parque (18 nov).